Pasolini, centenário: “Accattone”

Pasolini, centenário: “Accattone”

Janeiro 23, 2022 0 Por Roni Nunes
Partilhar

Pier Paolo Pasolini nasceu em Bolonha, em, 1922. No ano do centenário do seu nascimento Cultura XXI apresenta uma série de artigos sobre os seus filmes.

Onde a esquerda política dos anos 60 queria um trabalhador idealizado pronto para uma ação positiva contra um sistema capitalista opressor, o comunista Pasolini entregou-lhes, no seu primeiro filme, Accattone (1961), um proxeneta como representante das classes populares. Escancarou assim, de uma forma pragmática, os limites incómodos do ideário revolucionário – baseado num conjunto de ideias assentes em princípios dogmáticos e moralidade puritana que ombreiam com uma noção frequentemente ingénua da massa economicamente desprivilegiada.

Esta, antes de ser proletária, é humana e, como tal, guiada por paixões. É duvidoso que a iconoclastia daí surgida seja “útil” para a construção de um mundo melhor, mas não compreender a natureza humana tornou-se, nos países onde os comunistas venceram, um erro de importantes consequências.

Accattone (Franco Citti) vaga esfomeado pelas ruas

Este filme não é para Fellini…

Pasolini acabou por entrar na indústria do cinema depois do sucesso de duas obras literárias, uma das quais a fonte direta para este filme – “Una Vita Violenta”. Foi esse retrato da periferia romana que lhe rendeu um convite de Federico Fellini para dar credibilidade à prostituta de Noites de Cabíria. E teria sido bem possível que Fellini, se usasse os poderes que lhe foram outorgados pelo produtor Angelo Rizzoli para financiar novos talentos, fosse o produtor de Accattone.

Mas, para desespero de Pasolini, conforme história recordada mais tarde por outra grande do cinema italiano, Bernardo Bertolucci, que seria assistente de realização em Accattone, o “maestro” não gostou do que viu… Ou então, simplesmente, não quis se comprometer com novas polémicas um ano depois dos escândalos de A Doce Vida. Disse mesmo a Pasolini que ele só tinha talento para a escrita…

Foi outro colega, no entanto, quem salvou uma estreia que poderia nunca teria ter acontecido. Mauro Bolognini, para quem Pasolini tinha escrito La Notte Brava, dois anos antes, gostou do projeto e o levou a Alfredo Bini – que viria a produzir os quatro filmes subsequentes de Pasolini. Quanto ao lançamento de Accattone, o que veio a seguir foram polémicas em Cannes, confusões com a censura caseira, crítica pesada vinda de esquerda e direita. Pasolini sentiu desde o início que não é fácil a vida de iconoclasta.

A prostituta (Sivlana Corsini), ao fundo, a única fonte de sustento de Accattone

Um subproletariado pouco recomendável

O filme inicia com um “close-up” de um homem desdentado, que começa a falar imediatamente; a câmara segue para uma mesa onde um animado grupo de desocupados discute; tudo termina numa aposta, onde o protagonista (Franco Citti), um proxeneta que decide se mandar de uma ponte para dentro do rio logo depois de comer para provar que não morria.

A sequência introduz o caráter destemido de Vittorio, que prefere ser chamado de “accattone” (“vagabundo”, em italiano). Ele se orgulha de não trabalhar e vive de explorar uma única prostituta (Silvana Corsini). Quando esta termina por parar na cadeia, o protagonista passa fome, apaixona-se por um ingénua jovem (Franca Pasut) vinda do interior (que não hesita em tentar explorar sexualmente!) e, por influência desta, até tenta trabalhar.

O cineasta segue o seu protagonista no estilo quase-documental das narrativas baseadas nos personagens (e não nos “plots”, como os filmes de Hollywood)  e junta pelo caminho, nas suas historietas sem grande conexão umas com as outras, uma enorme parcela de subproletários – quase invariavelmente de atitudes pouco recomendáveis.

Pequenos ladrões: o “subproletariado” de Pasolini

Fatalismo e desestabilização

O destino que dá ao seu protagonista, perdido numa teia sem hipótese de redenção, não ajudou propriamente o cineasta a ficar bem visto entre seus pares à esquerda. Afinal, dentro deste terrível fatalismo (realismo?), onde haveria espaço para a ação política regenadora do oprimido?

Claro que Pasolini odiava a democracia-cristã (e, obviamente, os escombros do fascismo que não estavam tão desmaterializados assim) que vinha sendo das alas mais bem-sucedidas da direita italiana. Mas ele acaba por se libertar de qualquer tutela dogmática que não as das suas próprias crenças ao desviar-se de qualquer dogma rigidamente formatado.

É ilustrativo que o cineasta, numa entrevista, chegue a criticar o desprezo dos comunistas pela psicanálise, uma perspetiva que ele considerava importante como ferramente de compreensão do género humano. Claro que a pouca afinidade da esquerda com ela é compreensível: a psicanálise é outra forma desestabilizadora de ir além do discurso e da representação.

A jovem ingénua (Franca Pasut) e, talvez, a redenção pelo amor

As acepções de Pasolini também tinham os seus próprios aspetos curiosos: o grande entusiasmo dele por estas pessoas baseava-se numa espécie de justificação edénica – em se tratando de pessoas não afetadas pelo pecado original dos ideais e comportamentos pequeno-burgueses – algo que já não acontecerá com a protagonista de Mamma Roma.

As heranças “desagradáveis” do neorealismo

Como salienta Naomie Green no seu livro “Pier Paolo Pasolini: Cinema as Heresy”, os italianos estiveram longe de fazer o que promoveram os franceses da Nouvelle Vague, que esmagaram impiedosamente a geração que os procedeu. Longe disto, temas sociais, política de protesto, descrição da vida dos desfavorecidos e outros elmentos, incluindo estéticos (também Pasolini usa atores não-profissionais para dar credibilidade aos seus personagens e filma maioritariamente em locações e espaços abertos), que vinham do neorealismo continuaram presentes no cinema italiano.

Os problemas de Pasolini com “o mundo” não se restringem obviamente à esquerda. começam, no entanto, pelo “timing”. Umberto D, o clássico de Vittorio de Sica lançado em 1952, teria representado o fim simbólico do neorealismo depois do duro ataque perpetuado pelo futuro primeiro-ministro Giulio Andreotti, que o acusava de um desserviço à pátria. Em causa estava a necessidade uma arte mais otimista e que tirasse os italianos dos caixotes de lixo da ressaca do pós-guerra. A Itália precisava ser reconstruída e não era aquele cinema baseado em histórias de despossuídos que iria ajudar…

Accattone tenta persuadir o seu par romântico… a trabalhar nas ruas

Uma década depois esse mergulho credível (Pasolini viveu num dos bairros de lata que retrata quando veio do interior para Roma) na vida da periferia seria ainda menos bem-vindo. Por estas alturas os italianos remediados viam-se como em pleno voo para bem longe das trevas do pós-guerra e estavam muito pouco interessados em saber que, para além dos limites das suas fulgurantes cidades em crescimento, existia ainda uma vasta população de miseráveis vivendo nos limites da sobrevivência.