Pasolini, centenário: “Mamma Roma”
Pier Paolo Pasolini nasceu em Bolonha, em, 1922. No ano do centenário do seu nascimento Cultura XXI apresenta uma série de artigos sobre os seus filmes.
Federico Fellini convidou o escritor de “Una Vita Violenta”, publicado em 1955, para ajudar a dar credibilidade a prostituta que protagonizava Noites de Cabíria. O referido escriba, Pier Paolo Pasolini, contribuiu com as cenas de rua – particularmente uma onde Giuletta Masina sai na pancada com outra “colega”. Mas a “mulher de vida fácil” de Fellini logo transporta-se, com a sua filiação chapliana, para o universo de um mundo sofisticado – de clubes, carros velozes, mordomos e apartamentos de luxo – e com “insights” frequentemente cómicos.
Tais suavidades não interessavam a Pasolini. Quando este decidiu, quatro anos depois de Noites de Cabíria, fazer ele próprio um filme sobre o assunto, a prostituta vivida por Anna Magnani nunca chega a sair das pérfidas povoações onde trabalhou durante a sua vida – mesmo quando tenta abandonar o “ramo” numa tentativa de ser aceite socialmente. A verve do cineasta de Bolonha, que iniciou a carreira um ano antes com a vida de um proxeneta (Accattone), mirava outros horizontes…
Mamma Roma é vivida por Anna Magnani, que manteve-se célebre em Itália depois de protagonizar uma das cenas mais icónicas do neorealismo – a do assassinato em Roma, Cidade Aberta. A atriz andava especializada em viver personagens rudes e sem classe e aqui não faz por menos: adentra com grande espalhafato um almoço de casamento seguinto três porcos pequenos. A refeição está organizada como se fosse uma das reproduções da última ceia, mas de santo ninguém tem nada por aqui: ela é uma ex-prostituta que foi explorada por Carmine (Franco Citti), precisamente o noivo no centro da celebração.
Muitos anos depois essa mulher busca a própria redenção: passa a vender verduras na feira e vai buscar o filho, Ettore (Ettore Garofolo), o qual havia deixado na aldeia, a fim de trazê-lo para a cidade e dar-lhe um “futuro”. O destino nega a realização dos sonhos pequeno-burgueses de Anna – que volta a ser duramente castigada pelo passado com o retorno do antigo “patrão” das ruas. Com Ettore, Pasolini também fecha um ciclo de heranças e determinismo: ao nunca encontrar um lugar na sociedade, vivendo sem objetivos e tendo como único desejo Bruna (Silvana Corsini), uma descompromissada e promíscua jovem das redondezas, termina delirante e implorando para voltar para aldeia.
Esse destino de pouca simpatia de Pasolini representa o primeiro momento onde ele aborda frontalmente o seu ódio de estimação: a pequena-burguesia e o consumismo que tomava conta da sociedade italiana (e ocidental). Esta vai longe: quando o Maio de 68 atraiu as simpatias românticas da esquerda mundial, o cineasta vociferou num poema que aqueles jovens que protestavam nada mais eram que os filhos de gente privilegiada; nos confrontos com a polícia, eram os agentes desta que representavam o verdadeiro proletariado oprimido.
Fundamentalmente, Pasolini acreditava que todos os projetos que o fascismo não tinha conseguido sob coação os governantes obtinham agora através da sociedade de consumo – por outras palavras, a homogeneização, a alienação e o reforço do poder do Estado. Talvez por isso Mamma Roma foi melhor aceite pelos pares de esquerda de Pasolini do que Accattone, enquanto continuou arranjando confusão com a direita – especialmente os restos do fascismo que ainda assombravam a Itália.