“The Beast”: que medo será melhor que o de não experimentar?

“The Beast”: que medo será melhor que o de não experimentar?

Julho 12, 2024 1 Por admin
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Por André Gonçalves

“Can you pretend to be afraid of something that’s not there?” Que medo será melhor que o medo de não experimentar?

Henry James, no seu conto de 1903, relatava em poucas páginas a experiência trágica dessa não-experiência. Um homem que, por antever no futuro um acontecimento raro potencialmente incrível, potencialmente trágico, acaba por não viver verdadeiramente – nomeadamente uma grande paixão.

Bertrand Bonello, com a pompa que já nos vem habituando (até em experiências de isolamento pandémico como “Coma” de 2022), expande esta fonte, transcendendo tempo, identidade e género, como se tivesse prometido a si mesmo um grande tratado sobre o poder arriscado da Arte contra precisamente esse medo que possa causar inércia e conforto. 

A história de James pode ser vista mais de perto no primeiro segmento temporal de 1910, mas mesmo aí há uma troca curiosa de género – o alvo do medo passa a ser a mulher em vez do homem, é este que lhe lembra do encontro prévio. De facto, há um acontecimento trágico envolvente que parece justificar o medo de arriscar: a tragédia real das inundações de Paris surge aqui nesta ficção surreal. 

O segundo segmento, datado de 2014, prossegue com a linha maestra narrativa para uma trama de Hollywood, onde há espaço para um piscar de olhos a outra tragédia real: os assassinatos misóginos de Isla Vista. 

É no terceiro segmento, em 2044, no “presente” da narrativa, onde a tragédia aparenta toda já ter acontecido, e talvez por isso, porque o grande apocalipse efetivamente aconteceu, e para libertar o sentimento que tanto oprime e alegadamente retarda a classe humana, a inteligência artificial promove uma “limpeza de alma” aos seus “progenitores” para assim poderem efetuar trabalhos mais intelectualmente complexos, para um esforço colaborativo com as máquinas que gere o máximo de produtividade possível. Gabrielle (uma cada vez mais impressionante Lea Seydoux) aceita ir a uma entrevista que requer esse programa de limpeza, que tem inclusive acesso às vidas passadas do indivíduo. É aliás assim que os três segmentos temporais se unem – Gabrielle encontra todas essas vezes Georges (George MacKay a preencher habilmente um papel que tinha sido desenhado para o falecido Gaspard Ulliel de “Saint Laurent”), um homem que terá confidenciado noutra vida ter um medo de que algo ia acontecer, mesmo não sabendo exatamente o quê ou quando. 

Haveria tanto para falar e dissecar, que aguardei duas semanas para escrever um texto, ironicamente com medo de fazer justiça ao que tinha acabado de assistir. Nunca farei, por isso o melhor a fazer será libertar-me. O filme oferece-nos, em várias camadas, uma discussão infinitamente fascinante sobre o que é isto do “medo” de viver que nos assaltará em vários momentos (e em vários períodos temporais distintos, independentemente das tecnologias em vigor) como um coletivo de espécie, e como romper com moldes narrativos pré-instaurados é em si a fuga humanitária necessária para alcançar um verdadeiro passo evolutivo.    

Ao longo de quase duas horas e meia, Bonello vai brincando com todas as nossas expectativas (e sim, medos!), sendo que cada um dos segmentos anteriormente mencionados habita um género próprio. O tom esse está então sempre em trânsito, podendo ter ali uma carga onírica em comum, que já está a merecer comparações a David Lynch, quer de defensores quer de detractores. Sendo difícil não ver a influência, até por um uso de um certo tema-chave de Roy Orbinson, Bonello esculpiu já a sua própria assinatura com as suas idiossincracias passadas e presentes, e “The Beast” será, pelo menos para já, a sua grande obra-prima