
Visconti, “Senso”: o aristocrata marxista e o encontro impossível entre dois mundos
Uma condessa italiana (Alida Valli), aristocrata e comprometida com os ideais do Risorgimento (o processo de unifcação do país), apaixona-se por um oficial austríaco (Farley Granger) – iniciando com quartos de hotel e evoluindo para uma febre delirante pelas ruas de Veneza. Pelo meio, o pano de fundo histórico da unificação italiana é corajosamente dessacralizado.
Cada vez mais distante do neorealismo que ajudou a inaugurar (em que pese a controvérsia em torno de Osessione (1943), La Terra Treme (1948) é, inequívocamente, um exemplar do género), Visconti recebeu da Lux Films, em 1953, a incumbência de fazer um filme de “grande valor artístico”. Não fazendo por menos, o cineasta descendente de uma família nobre italiana cujas raízes vão dar à Idade Média, abre o filme apresentando as escaramuças do Risorgimento com uma encenação de “Il Trovatore”.
A ópera de Verdi, história da paixão entre um trovador e a dama de companhia de uma princesa, expõe um paralelo com os protagonistas de Senso, mas também é durante a execução que, a dado momento, flores de papel brancas, verdes e vermelhas, as cores da Itália, desabam sob as cabeças dos oficiais austríacos. No final do século XIX, os sonhos de unificação do país, a caminho de serem bem-sucedidos, entrelaçam um mundo de rebeldes, conspiradores e revolucionários que, num último estágio, trataram de expulsar da península o povo germânico.

Ou, pelo menos, segundo o passado idealizado pelas elites nacionalistas italianas: mais de meio século depois, Visconti arranjou problemas com conservadores diversos (particularmente com o Exército) ao mostrar a derrota no campo de batalha e uma elite representada pelo oportunista conde Sarpieri (que apoia os austríacos mas não perde a oportunidade de aproximar-se dos rebeldes) e pela desastrosa paixão da esposa dele por um oficial austríaco. O tema da unificação italiana continuava em alta: entre 1949 e 1954, nada menos que 12 filmes sobre o assunto foram produzidos – embora nenhum com a importância de Senso.
Paixões incontroláveis
O pano de fundo histórico vai sendo substituído gradualmente por aquele que é o grande tema do filme – em sintonia, aliás, com Osessione: as paixões incontroláveis. Mas, enquanto no típico romance “noir” que inspirou o primeiro filme de Visconti os amores enlouquecidos condenados tendem a ser um fim em si mesmo, aqui eles estão interligados a outro tema: a relação entre o indivíduo e o meio que o circunda.
No seu livro “Visconti: Explorations of Beauty and Decay”, Henry Bacon vai buscar ao escritor russo Anton Chekhov, desaparecido em 1904, o modelo para a dissecação do “aparelho” dramático construído em Senso. Na obra do autor russo, a forte crítica à sociedade czarista era operada através de uma cuidadosa construção das relações psicológicas e sociais dos seus personagens – artifício que substituía uma mensagem explícita e proselitista.

Escreve Bacon: “Desenvolvimento social não coincide com os desejos dos seus personagens, que preferem olhar para o passado (…) Eles podem ser inteligentes e sensíveis, mas incapazes de construir um futuro para eles próprios e se adaptar às inevitáveis mudanças que têm lugar ao redor deles”.
De facto, o que se encontrará em Senso não são apenas protagonistas atolados nas suas paixões ou na inércia egocêntrica mas, eventualmente, o olhar de um Visconti para um mundo aristocrático que já não tinha lugar. Como observa o historiador, “um novo tipo de realismo emerge através da união entre o espetáculo e a análise crítica da realidade. Isto permitiu a Visconti trabalhar as tensões entre seu atrelamento emocional ao passado e o seu comprometimento intelectual com o futuro, entre o seu passado aristocrático e a sua ideologia marxista, entre os seus traços decadentes e progressistas”.
Visconti e o século XXI: um mundo que, de facto, desabou
O que Visconti estabelece a partir do rumo que dá ao seu melodrama pode ser interpretado de diversas formas: no meio aristocrático, contrariar o papel social em nome de uma liberdade individual radical só pode acabar em desgraça; a constatação tácita da impossibilidade do indivíduo sobreviver através da paixão ao papel que lhe foi destinado – e o qual a condessa não só trai a própria classe como o seu próprio país em construção; a perceção de que, tal como nos romances “noir”, a paixão desenfreada conduz sempre a tragédia; a descrença no amor romântico como possibilidade transgressora uma vez que cria um universo irrequieto de impulsos e ilusões.

Como testemunho da própria visão de Visconti ao narrar a derrocada de uma ordem, pode-se arriscar ainda um paralelo com as sociedades ocidentais do século XXI, onde as elites são maioritariamente financeiras (em parte, pelos menos, onde os lugares são asseguradas pelo conceito de meritocracia) e a classe média socialmente desenraizada plana fluidamente no tempo e no espaço. Ai, com as demandas identitárias a reforçarem ainda mais o estilhaçamento de antigas estruturas, um drama em função do “lugar” que alguém ocupa na sociedade soa pleno de possibilidades interpretativas.