
Oscars 2024: “Anatomia de uma Queda”
Por André Gonçalves
Samuel Maleski cai de uma janela. Acidente, suicídio ou homicídio? A sua mulher, uma escritora que aceitou refugiar-se com o marido num chalé isolado, onde o inverno cobre a paisagem de branco e aumenta ainda mais o isolamento, torna-se a principal suspeita. Sem testemunhas (pelo menos humanas), o caso fica bicudo. Afinal de contas, Sandra Voyter (Sandra Hüller, numa performance justamente reconhecida pela Academia de Hollywood) não é uma personagem de grandes sorrisos e depressa nos apercebemos que a realizadora e co-argumentista Justine Triet está mais interessada – e bem – na anatomia do julgamento social que do próprio crime.
Num ano onde a conversa sobre o feminismo em película encheu manchetes (“Barbie” logo à cabeça, “Pobres Criaturas” mais recentemente), Triet entrega-nos aquele que é, de uma forma mais silenciosa, o espelho melhor sobre a nossa cultura patriarcal em 2023. Afinal de contas, uma mulher aparentemente fria e de cabeça independente torna-se automaticamente uma vilã, sobretudo quando a maior prova da acusação é entregue: uma discussão marital gravada e uma das sequências mais habilmente montadas aqui, onde o áudio passa a “flashback”, que por sua vez reforça a ambiguidade sobre a pertença destas imagens (pertencem a Sandra ou a quem a julga?) e sobre o lugar da “verdade” na vida e, claro, no cinema que tanto a reflete. De facto, com esta torrente constante de imagens fora do contexto a que somos alvo nas redes sociais, estamos mais do que nunca a questionar se existirá efetivamente uma só verdade, ou se a verdade dos factos não é em si um conceito subjetivo às experiências de cada um – isto, claro, para lá dos conceitos-chave físicos, de que a morte se sucede à vida, de que giramos em torno de uma estrela etc.
Claro que a conversa de jantares pós-filme se orientará toda ainda assim para a “verdade mediática” que sai do julgamento “físico” e a ambiguidade que insiste em permanecer mesmo após ser lançado um veredito final. É essa a maior das armas deste cavalo de madeira francês colocado em Los Angeles, sob a qual nos poderemos perder em mais do que 2 ou 3 teorias. Terá Sandra assassinado o marido num ataque de raiva? Terá o marido cometido suicídio? Terá caído por acidente? Haverá ainda a hipótese de ter existido até um suicídio mas sabendo que pudesse incriminar a mulher? E assim sucessivamente…
Aliás, a própria Sandra Hüller veio revelar que nunca soube se a sua personagem era inocente ou culpada, e a única instrução que obteve de Triet nesse sentido foi de representar como se fosse inocente. Até o conceito de “spoiler” se torna redundante na presença de uma obra com tantos caminhos possíveis após os créditos finais. Para uma cultura ocidental preocupada com binarismos desportivos, políticos, sociais ou românticos (ou é uma coisa ou outra, ou estás comigo ou estás contra mim) – afinal o capitalismo funciona melhor com “equipas” – é deveras refrescante haver um apoio de massas a uma obra como esta.
Voltando às performances, se Hüller tem aqui a confirmação de carreira com a nomeação a Oscar (e dupla nomeação aos BAFTA) de uma projeção internacional cada vez mais impressionante e com um ano verdadeiramente ímpar (podemos vê-la também em “A Zona de Interesse”), crédito há que dar aos seus parceiros de crime, nomeadamente o jovem Milo Machado Graner, à “vítima” Samuel Theis e ao cão Messi.
Para uma gímnica potencialmente tão irritante, “Anatomia de uma Queda” é o caso cada vez mais raro de filme que justifica em pleno o seu “hype” que foi crescendo desde a sua Palma de Ouro em Cannes, em maio do ano passado, e cuja aparente imperfeição se vai alojando cada vez mais no nosso cérebro ao ponto de só crescer em estima quando olhamos para ele em retrospetiva. Excelente sinal positivo para Justine Triet, a única mulher francesa nomeada na história para o Oscar de realização até à data, cujo anterior “Sibyl”, igualmente magnífico se mais “convencional”, tinha sido menosprezado por tanta boa gente, e que pode agora comandar melhor as suas escolhas profissionais, onde o escárnio agora é substituído pela inveja alheia. Façamos figas para que, independentemente do caminho que siga, nos continue a questionar sobre onde vamos.