
O que ainda há para dizer sobre “Blonde”
Por André Gonçalves
O que resta para explorar de um dos ícones pop do século passado? Marilyn Monroe carrega em si esse fardo mediático de sobrexposição, logo sobreproteção, e ainda assim, não deixa de ser interessante como alguns dos aspectos da sua vida ainda se encontram envoltos em mistério ou, como no caso da sua morte, em teorias da conspiração.
Convém reforçar logo à partida que Blonde nunca nos pretendeu dar “toda a verdade” como esse género tão malfadado como premiado que é o “biopic” costuma vender (e bem sabemos o quão fabricados ainda assim são os eventos quando vêm acompanhados de um “baseado em factos reais”…). O romance original de Joyce Carol Oates faz questão de se separar dos “factos” para mostrar-nos uma versão alternativa da sua vida. Esse é, infelizmente, um dos entraves automáticos à polícia da História a quem não se inibirá de parar o filme a meio dizendo “Esta não é a minha Marilyn!” (engraçado que poucos dirão “Esta não é a minha Norma!”).
Andrew Dominik (The Assassination of Jesse James By The Coward Robert Ford) tinha também um segredo que revelou antes da estreia deste filme: não se sente propriamente enamorado pelo objeto do seu próprio “anti-biopic” enquanto atriz, mas sim pelo objeto enquanto… objeto, ícone, pela imagem – fazendo escorrer tinta quando teceu comentários misóginos sobre Os Homens Preferem as Loiras numa entrevista para a Sight and Sound (https://www.bfi.org.uk/sight-and-sound/interviews/im-not-interested-reality-im-interested-images-andrew-dominik-blonde). Estava o caldo mais que entornado.
E sobre o filme propriamente dito? Bem, de facto Dominik escolheu um conjunto de imagens públicas da estrela em vários momentos da vida para a partir deles construir a sua própria fantasia, como ele próprio afirma. Isto cria por si só uma provocação interessante – nós conhecemos estas imagens, e agora temos um acompanhamento audiovisual para estas; o primeiro instinto, aquele que uma vez acreditou que os dinossauros tinham voltado à vida com Jurassic Park, será sempre confiar nestes “testemunhos” como sendo o que “aconteceu”. Esse tem sido o poder do Cinema no último século. O conselho pessoal antes de carregar no botão “play” aqui é “Não se deixem enganar pela fantasia, por muito que vos tente.”

Se o espectador aceitar os termos do contrato, encontrará aqui um filme de uma radicalidade refrescante no panorama atual pós-cultura de cancelamento. Blonde transita constantemente entre o preto e branco e a cor, e entre vários formatos de ecrã, aparentemente sem uma justificação que seja óbvia para o espectador – apesar desta arbitrariedade pode ainda assim encaixar na lógica surreal e onírica a que o filme se propõe, convocando inevitavelmente o nome de David Lynch (Twin Peaks, Mulholland Drive) aqui e ali, no som (i.e. banda sonora de Nick Cave e Warren Ellis) e na visão.
O tema principal aqui será, como em biografias mais oficiais, a dicotomia Marilyn e Norma, a primeira acumulando os sucessos ao longo da carreira, e a segunda acumulando traumas. A dissociação seria tão grande que esta ficção lembra-se de imaginar a certo ponto a transição de uma para a outra como se de uma convocação espiritual se tratasse. Claro que Blonde não atingiria metade do seu objetivo, sem ter uma visão de Marilyn/Norma à altura, e pode-se dizer que saiu aqui a sorte grande no “casting”: Ana de Armas, de ascendência cubana, mergulha fundo no papel, e se no campo de mimetizar todos os gestos, está impecável (tirando um ou outro deslizar do sotaque, o que acaba por ser refrescante, e dá também voz ao carácter ilusório da peça), acima de tudo tenta construir algo mais profundo dentro do mundo de fantasia/pesadelo onde o autor a fechou. A elusiva nomeação ao Oscar só lhe escapará porque o filme em si é precisamente tão difícil, tão confrontacional com a imagem (também ela ficcionada, essa é a grande ironia) que o grande público tem de Marilyn Monroe, lá está. Bohemian Rhapsody isto não é – e ainda bem!
Ao fim de quase três horas, o filme tornar-se-á um teste de resistência para muitos ao conter tantos passos da “Paixão” (múltiplos abortos e abusos, os casamentos falhados sucessivos…) até ao derradeiro fechar da curtina. O falatório à volta deste Blonde promete incendiar alguns fóruns, mas no final é impossível negar que temos aqui uma obra onde a provocação mais ou menos fácil dá também origem a uma obra estranhamente hipnótica, com direito a algumas das imagens bem marcantes (a cena do “ménage”, com a distorção dos corpos e a transição dos lençóis para o Niagara, por exemplo…).
Acho o filme excelente. Ana de Armas merece 2 Oscars: um por Marilyn, outro por Norma Jean.