Fracassos no cinema em 2023: o público está cansado de super-heróis?
Como todos os anos o cinema “mainstream” apresenta sucessos e fracassos – estes nem sequer salvos por milionárias máquinas de “marketing” e distribuição. Em 2023 a ultrapoderosa Disney chamou a atenção pelas piores razões, acumulando desde filmes que sofreram nas salas mas que ainda podem se recuperar por outras vias até desastres monumentais como “As Marvels”. Estarão as pessoas cansadas de filmes de super-heróis? Os exageros das representações “corretas” também terão interferido, como referiram alguns, no desempenho dos filmes? Mas também houve casos de sucesso – como o fenómeno singular do “Barbenheimer”, que levou dois filmes muito diferentes à uma escalada de sucesso. Segue abaixo uma conversa esclarecedora com Jorge Pereira, editor e crítico do C7nema.
Todos os anos existem fracassos de bilheteira, mesmo contando com investimentos maciços em “marketing”. Este ano muito se tem discutido os dos super-heróis, por exemplo – com fracassos tantos da Disney/Marvel quanto da Warner/DC. Um dos argumentos que têm circulado é de que o público estaria a ficar cansado desses filmes – embora alguns (“Guardians of Galaxy Vol. 3”, “Spider Man: Across the Spider Verse”) foram bem-sucedidos. Acha que isso do cansaço seria uma explicação? E por que acha que correu bem com estes dois exemplos?
As “majors” tentam sempre tornar os seus filmes em eventos. Os filmes da Marvel, seja via Disney, seja via Sony, naturalmente sofrem com o cansaço do público, principalmente porque um filme nunca fica circunscrito a uma sala de cinema. Eles expandem-se com ligações a séries, “comics”, prequelas, sequelas, “spin offs” etc etc.
São os tais universos que inevitavelmente caíram em repetições, redundâncias e mais do mesmo, num quase sentimento de “soap operas”. Filmes com histórias recicladas cada vez menos surpreendentes exigem uma triagem e filtragem mais intensa por parte do espectador. Nos “comics”, foram frequentes os períodos de ascensão e queda, de renovação das personagens, etc. O problema é que fazer um filme não tem os mesmos custos de fazer um “comic”, onde os bem sucedidos continuam, os outros não.
Mas também não nos vamos esquecer de uma coisa importante: antigamente, o sucesso nos cinemas de um filme era essencial, pois o que vinha a seguir, “home vídeo” e exibição televisiva, era limitado. Agora, com o “streaming” em centenas de países, ganha-se mais dinheiro e depois ainda temos merchandise e venda dos direitos de personagens para publicidade, direitos de imagem etc. Um filme que “fracassa” no cinema não significa um prejuízo efetivo no final da sua vida (eterna), mas é acentuado hoje em dia porque há relatórios trimestrais e anuais de ganhos e perdas imediatas de grandes empresas para apresentar a acionistas.
Outra das grandes polémicas do ano tem envolvido a Disney e a suposta influência de algumas agendas sociais no insucesso de certos projetos – como o caso de “As Marvels”. Apesar deste tipo de comentário gerar sempre muito “buzz” na comunicação social, parece um tipo de explicação bastante insatisfatória – até porque outros filmes com mulheres no protagonismo (caso do filme citado) foram enormes sucessos, como “Barbie”. Como percebe esse tema?
A Disney continua com a sua agenda desde sempre: fazer filmes para a família de teor moralista/didático, ganhando muito dinheiro no processo. A diferença é que expandiu a família, naquilo que muitos chamam de agenda progressista. Mas o objetivo é atrair novos públicos e ter mais clientes. Daí vêm as tais conversas de agenda progressista, mas no fundo é capitalismo.
“Barbie” foi um filme-evento, “As Marvels” não. As agendas pouco importam, para o bem ou mal, num “blockbuster”. Num filme pequeno sim, pois atraem nichos. Nos potenciais “blockbusters”, procuram-se sempre mais consensos e para tal se executam dezenas de “screen tests” até o produto final estar em condições para sair para o público-alvo. Se um filme desses tem uma agenda mais ou menos progressista, vem do que o público-alvo pede, testa e escolhe.
Na mesma linha, o CEO da Disney, que já tinha adiado o seu “Snowhite” alegadamente em função das polémicas com a atriz principal, já veio dizer que serão retiradas “mensagens” dos filmes. Acha que é uma constatação das empresas, independente da justiça das causas sociais, de que agendas progressistas estão interferindo negativamente no “marketing” dos seus produtos por incomodar a fatia mais conservadora do público?
Uma multinacional procura lucro, não está cá para justiça das causas sociais se não der dinheiro. A questão da atriz tornou-se tóxica para um produto que já de si era cansativo e derivativo: adaptar a “live-action” às suas animações. Andamos nisto também há mais de uma década, com filmes muito pouco relevantes, com exceção do “Rei Leão”. Por isso, vale a pena adiar e é o que estamos a ver. Amanhã as palavras da atriz são esquecidas, estará outro nome será espancado nos “media” por qualquer outra coisa, e segue-se para o projeto novamente, se existir público (e lucro estimado para isso).
De outro lado, houve ainda assim grandes sucessos – e um fenómeno de “marketing” muito particular – o “Barbenheimmer”. Francis Ford Coppola, aliás, até falou sobre isso de forma bastante entusiástica. Acha que esse tipo de singularidade pode ser uma saída para as equipes de “marketing” no futuro ou foi uma aventura casual?
Essencialmente, o “Barbenheimer” mostrou o poder explosivo dos “media” não tradicionais, em particular das redes sociais, em criar tendências (“trends”) no mundo em que vivemos. Mais que ir ao cinema, “per se”, as pessoas queriam participar no evento e fazer parte da “trend”. Não foi o único caso, embora tenha sido o de alcance mais global.
Em França tivemos algo parecido em torno do filme da Vanessa Filho, “O Consentimento”. O filme multiplicou por dez vezes o número de bilhetes vendidos desde a sua estreia muito morna nos cinemas franceses, alimentado em grande parte pelo factor de trend do TikTok entre o público jovem. O filme teve um incremento de 40% nas vendas de bilhetes na segunda semana, e um aumento de 72% na terceira semana. Criou-se um evento a partir de um filme.
A Marvel também fez isso com grande parte do seu catálogo, em particular com os filmes “Os Vingadores”. A transformação de um filme em “evento” torna-se essencial para bater esses recordes essencialmente mercantilistas.. Não é de agora. Sempre foi assim, expandiu-se foi a dimensão. Os filmes agora para serem sucessos magníficos não precisam só de “buzz”, de um grande boca em boca, mas de fazerem parte de uma “trend” que nasce ainda antes de estrearem.
O cinema enquanto experiência em sala sempre enfrentou desafios (televisão, VHS) e tentou se reinventar muitas vezes através de novas tecnologias. Mas acha que essa conjuntura pós-pandemia, com a dura realidade do “streaming”, da pirataria e de um mundo de opções na “internet” em termos de entretenimento, o “cinema em sala” está a sofrer o pior período da sua história? Em Portugal, por exemplo…
Quando os cinemas tradicionais começaram a sair do centro das cidades, tal qual a população que lá vivia, para ir para zonas mais periféricas nos limites do concelho, onde também encontramos grandes superfícies (Colombo, Vasco da Gama), começou por se criar um problema. Esses centros comerciais teriam de ser mais que meras zonas de comércio. Tinham de ser espaços de lazer, quase um parque de diversões.
As nossas casas tornaram-se elas centros de lazer, com videojogos, videoclubes/streaming, discotecas e muito mais à mão. Por isso, a ida ao cinema, especialmente em zonas periféricas de acesso complexo por transportes públicos e pagamentos adicionais para estacionamento, tornaram-se mais caras, em “tempo” e “dinheiro”. São os filmes-evento que sustentam essas salas e existe uma dependência em criar esses eventos sistematicamente.
Em oposição, começamos a ver, primeiro em Lisboa e agora no Porto, um regresso ao miolo das cidades de alguns cinemas. Esses cinemas são mais especializados, muitas vezes o que denominamos filmes de autor e atraem esse público menor, mas adepto. Será mais fácil, até porque os seus programas culturais podem ser financiados (apoio à exibição), eles se manterem e sobreviverem no futuro.
E temos ainda os que chamo híbridos, preparados tanto para grandes eventos como o filme-concerto da Taylor Swift como para o último do Wim Wenders, como o UCI. Seja a localização (não-periférica), seja a posição (entramos nas salas sem ter de passar por uma extensa área comercial), seja a programação (“mainstream” e autor), essas salas são mais resistentes e apetecíveis de visitar para quem quer apenas e só ir ao cinema e ver um filme.
Além disso, tem havido um notável trabalho de curadoria em salas específicas. Cito o Trindade, o Batalha, o Ideal, o Nimas, a Casa do Cinema de Coimbra ou a Casa das Artes de Famalicão. Existe um trabalho primoroso de seleção de filmes e diversidade, convivendo filmes mais robustos em termos de orçamento com outros de menor orçamento. A expansão da exibição de cinema clássico e raridades, em circuitos fora a Cinemateca, é também de louvar..
A agenda progressista tenta enfiar goela a baixo suas mensagens, mas a forma como isso tem sido feita é bizarra. Uma Branca de Neve negra, um Indiana Jones coadjuvante? É receita para o fracasso.