Está aqui um dos filmes do ano: “A Substância”
Por André Gonçalves
“Espelho meu, espelho meu…”:
Se houvesse uma substância injectável capaz de prometer um eu mais novo (e um eu literalmente novo), arriscaria?
Aparentemente, num mundo cada vez mais refém da imagem – se manipulada por filtros, logo cada vez menos “real” – e de novos e infinitos “chefes de opinião” que nos dizem qual a melhor substância para quem não se revê em modelos instagramáveis (veja-se a nova moda injectável Ozempic), a proposta de um novo eu, tornada clássica na arte por obras como “O Retrato de Dorian Gray” (Oscar Wilde), está mais apelativa que nunca.
E se formos mulheres, e estivermos em Hollywood, ainda pior. Elizabeth Sparkle, outrora uma estrela de cinema vencedora de um Oscar, agora a preencher programas de dia de aeróbica, acaba por ser despedida ao completar 50 anos. “Aos 50, pára”, diz-lhe o produtor Harvey (apropriadamente grotesco Dennis Quaid). A frase não explicita o que pára exatamente, nem precisa. A verdade é que Elizabeth percebe que vai ser substituída por uma mulher mais nova, uma renovação que nos surge como natural, na nossa sociedade.
Eis que um acidente lhe dá uma possível solução em forma de “pen” intitulada “A Substância”. Num processo de encomenda também em si em gozo com o “mercado negro” destas drogas que tem logo génese em como esta é (não)nomeada, e onde a ausência de um “dealer” é transferida por uma linha de telefone, pacotes de cartão, e um armazém onde o corredor escuro culmina num misto de iluminação de loja de jóias e cofre de alta segurança, eis que temos o injectável e respetivo kit de estabilização. Mas claro, como um conto de fadas ala Grimm, tanta beleza tem o seu custo: lembrar que apesar de um novo ser brotar de outro (Margaret Qualley, igualmente magnífica), não deixam ambos de ser um, logo só pode coexistir um ao mesmo tempo, obrigando a um “timeshare” do mundo em intervalos de 7 dias. O espectador já sabe que esta regra vai ser quebrada ou não estivéssemos em território de cinema de género/conto de fadas vil/sátira de martelo pneumático na mão; as consequências desta quebra é que podem surpreender…
Num dos grandes golpes de casting recentes, embora a fazer ainda assim uma personagem 10 anos mais nova, Demi Moore, embora nunca tenha sido nomeada sequer a um Oscar (Será desta? Esperemos que sim, e se não for é mais um sinal de preconceito em relação ao género), dá mesmo a performance da sua carreira, despindo-se literal e figurativamente e entrando aqui numa terapia aparte das outras. A sua autobiografia “Inside Out” publicada anos atrás, onde demonstrou como se sentiu insegura com a sua imagem em épocas em que era vista como tudo menos isso, e era convidada a mostrar tudo, por um preço, terá ajudado a perceber que este era um regresso necessário e mais um ponto para fazer pazes com o passado. No caminho, a sua performance está a escarafunchar uma ferida que sentimos na pele: mulheres constantemente preteridas por versões mais novas delas mesmas, e que são belas embora não se achem – sem ela, o filme poderia ter ficado apenas um carnaval; Moore assegura que há catarse pelo meio. É dela a sequência mais enervante e empática, envolvendo acima de tudo um espelho. E é dela possivelmente a linha mais tocante de um filme com poucos diálogos, aquela que quase faria prever que o filme acabaria em drama após bastante sangue já ter sido derramado: “és a única parte de mim que as pessoas amam”.
O filme, para raiva de alguns, não acaba nesse aparente confronto final já de si violento, e desce ainda mais o nível de inferno tragicómico para uma conclusão caótica mas (im)perfeitamente lógica, levando o conceito ao seu radicalismo, e transmitindo uma circularidade que até podemos considerar “reconfortante” e catártica (nas estrelas em cima encontraremos paz). E aqui entra outra referência artística extra-cinema: o teatro parisiense Grand Guignol, entretanto extinto, famoso por no século passado fazer espectáculos de terror gráficos e amorais. Mas claro que o grande vómito dos últimos 20 minutos contém também pedaços de toda a história de cinema de género contemporânea (“Carrie”, “The Fly”, “The Shining”, etc. etc. etc., do som à imagem), até claro, chegar ao mítico passeio da fama de Hollywood e aí lembrar “La Voyage Dans La Lune” de Georges Méliès. De volta à casa de partida, de volta a França com a dissolução final.
Uma palavra final para quem pense que a vitória de argumento em Cannes é tão louca como o filme em si: lembrar que argumento não é só diálogos, é também “storytelling” visual. Quem tinha visto “Revenge” há meia dúzia de anos, não tinha duvidado que Fargeat é, além de uma incrível realizadora, uma excelente artista visual, preferindo muitas vezes mostrar sem contar – e o contar, é quanto muito um dispositivo “pop art” de repetição que muitos críticos de velha guarda não estão a saber lidar, e compreensivelmente diga-se: o diferente, o não subtil, o grotesco demorará sempre mais tempo a ser aceite pela elite. Poderia ter ficado restrita ao “ghetto” da novela gráfica, mas felizmente para nós, promete continuar a chocar no grande ecrã com arte que não é subtil. mas é sem sombra de dúvida inesquecível.
Um dos filmes do ano, está aqui – para começar conversas, terminar relações, e definitivamente mudar as nossas vidas. Vejam numa sala cheia, e testemunhem o poder de comunhão que o cinema ainda demonstra ter.