“Emilia Perez: A Pele Que Desejo Habitar”
Por André Gonçalves
– “Queres mudar de vida ou queres mudar de sexo?”
– “Qual é a diferença?”
Manitas, um barão da droga mexicano, contrata uma advogada para lhe ajudar com uma operação de mudança de sexo, sendo que no meio particularmente patriarcal do tráfico, é absolutamente necessário que não haja vestígios desta “troca de identidade”. O “nome morto”, como a comunidade trans o apelida, é associado a um corpo morto a ser noticiado e, no seu lugar, das cinzas e das ligaduras nasce Emilia Perez.
Este é o ponto de partida deste filme musical do “enfant terrible” do cinema francês Jacques Audiard, que não teme quaisquer fronteiras, sejam geográficas ou de género (em mais sentidos que um, lá está), e dá um salto de fé para um abismo num ano que tem sido bastante marcado pelo ano do “até às últimas consequências” (“A Substância” e “Megalopolis”, só para citar dois colegas da mesma classe de Cannes e duas outras grandes alegrias que repõem a fé no Cinema como arte em contínua mutação e ainda “muy” recomendável).
Se o espectador souber que “Emília Perez” teve origem num “libretto” escrito pelo próprio Audiard, talvez ajude a nivelar as expectativas de acordo. De facto, o adjetivo “operático” tem sido sobreusado – e contra mim também falo – mas o realizador e argumentista devolve ao seu cinema sempre de sombras e ambiguidades sociais uma dimensão dramática que ameaça constantemente cair no ridículo quando encena o trágico ou o romântico (na ópera, lá está, aceitamos tudo como um só). Se a ópera soará a telenovela a muitos, é normal – afinal de contas, é um filme que não esconde um apelo de massas na sua composição, mesmo que as vá dividir ao meio. E, claro, usa um universo quase todo ele feminino, nas suas multitudes. Mas usar a telenovela como pejorativo puro é de facto não estar com a receptividade para entrar neste universo e é de um potencial machismo e xenofobia que merece um questionamento ao espelho. Claro que há elementos de telenovela – que filmes não têm? Ou melhor: que tramas é que a telenovela não cobriu que o cinema já cumpriu? – mas há sempre cinema de tela grande a cobrir as suas entranhas mais ou menos problemáticas.
Por falar em feminilidade, Audiard socorre-se aqui de um quarteto de mulheres premiado em Cannes pelo conjunto (Karla Sofía Gascón, Zoe Saldaña, Selena Gomez, Adriana Paz), com o bónus de Camille na composição musical, para dar também a elas exposição e agência/liberdade – Gomez, tendo tido dificuldades visíveis no espanhol, teve o seu papel redesenhado para uma personagem com passado bilingue. Um outro momento de ligação ao cinema de Almodóvar: desde “Volver” que um elenco feminino não ganhava coletivamente um prémio de interpretação feminina no festival.
Recentemente, o realizador foi apanhado a dizer que não teve assim tanta investigação e leitura para fazer este filme, alimentando a conversa dos detratores que o filme é também em si xenófobo e apropriador de uma cultura que desconhece – mas o que é certo é que, pesando uma ou outra facilidade, até para ajudar ao alcance universal “pop”, o filme tem o seu respeito pelo “folklore” e pela gente que se vê logo nos primeiros minutos com uma adaptação de uma música de rua localíssima e orelhuda “Se compran colchones”. Portanto, um bom consultor deverá ter tido, pelo menos…
Os filmes não são para todos, claro – se são, é de questionar qual a sua verdadeira função enquanto arte. “Emilia Perez” sendo um caso – mais um este ano – de amor-ódio, é indiscutivelmente um filme imperdível. Uma obra sobre fidelidade ao “eu” só podia em retrospectiva ser tão idiossincrática como esta.