Doclisboa 2024 – Lula
Estreado no Festival de Cannes deste ano, a crítica francesa reclamou da parcialidade do documentário feito por Oliver Stone e Rob Wilson a propósito de Luís Inácio Lula da Silva – o mais icónico presidente da história do Brasil (a par, eventualmente, com outra figura controversa – Getúlio Vargas). É difícil para não-brasileiros entenderem a carga emocional despoletada pelo que está por trás da história recente de Lula – e que o atual presidente, vencedor final de uma história rocambolesca, merece todos os segundos deste filme.
Stone e Wilson construíram o seu documentário com base em entrevistas com o próprio Lula e pesquisa de material de arquivo. A parte histórica serve como uma boa introdução à sua biografia e revela um conhecimento bastante aceitável (só para variar…) de uma equipa norte-americana sobre o Brasil. O golpe de 1964 (onde o envolvimento direto dos Estados Unidos não é esquecido e surge hoje com evidências inquestionáveis) iniciou o regime militar sob o qual cresceu o rapaz pobre, nascido no interior de Pernambuco e, como tantos milhões que compõem hoje as populações de São Paulo e Rio de Janeiro, emigraram para o sul em busca de uma vida melhor. Foi no sindicato das indústrias metalúrgicas do ABC paulista, região a nordeste de São Paulo e um gigantesco pólo económico e industrial do Brasil, que a história ganha fôlego.
Enquanto o Sindicato organizava greves massivas e a ditadura caminhava para o seu crepúsculo, Lula decide que tinha que ser a classe dos operários, e não da elite, a fazer parte do governo. Foi com essa ideia que surgiu o Partido dos Trabalhadores (PT). Que este teria a sensacional trajetória que viria a ter, era impossível de adivinhar: facto é que, com as primeiras eleições diretas ocorridas em 1989, Lula conseguiu uma inesperada e assinalável vitória sobre Leonel Brizola no primeiro turno – perdendo no segundo para o candidato fortemente apoiado pela Rede Globo, Fernando Collor de Melo. Foi só 13 anos depois, na quarta tentativa, que Lula chegou a presidente. Mas este é apenas o começo de outra história.
Dois mandatos de Lula depois, que terminou com 90% de aprovação, e mais um de Dilma Rousseff, começaram os problemas – no segundo mandato desta última. Ávidos por tirar o PT do poder, a estas alturas a fazer parte de uma série de lideranças de esquerda por toda a América do Sul (e todos foram caindo, coincidentemente, antes ou depois!), a escolha foi através de um golpe jurídico liderado por Sérgio Moro, transformado em heroi nacional pela Globo e hoje totalmente desacreditado como o grande lider anti-corrupção.
O golpe foi feio, Dilma é derrubada e Michel Temer assume, mas os problemas continuavam: se Lula concorresse nas novas eleições, seria um provável vitorioso. Após nova jogada de bastidores no Judiciário e uma violenta campanha de ataques sistemáticos da Rede Globo e da revista Veja, entre outros, ele é impedido de concorrer e preso de forma fraudulenta (tudo será posteriormente desmascarado por um “hacker” e publicado pelo jornalista Glenn Greenwald, do Intercept). Mas, por incrível que pareça, ainda podia piorar: com Lula fora do caminho, o Brasil seria o palco para a presidência de um dos tipos mais inacreditáveis, aberrantes e bisonhos da história política brasileira.
Num momento comovente, às vésperas de ir para a prisão, Lula diz “um dia venceremos”. Que isso de facto aconteceria era outra das grandes improbabilidades da História. Neste momento, depois dos seus apoiantes tentarem o golpe antes da transmissão do poder, Jair Bolsonaro está impedido de concorrer e, pelo menos num país no mundo sujeito às aberrações da extrema-direita populista (veja-se o caso de Portugal ou dos Estados Unidos, por exemplo), o seu líder está calado.