
Cannes 2021, filmes: terrores evangélicos, pandemia, Bergman e a miséria na Transilvânia

Brasileiros e portugueses estiveram representados esse ano na Quinzena dos Realizadores e, com estilos e temas muito diferentes, colheram elogios – de forma geral. Já Mia Hansen-Love agrada sempre aos críticos – neste caso com a sua “visita espiritual” à ilha onde viveu Ingmar Bergam; na Roménia Radu Mundean visita a miséria da Transilvânia atual, enquanto cineastas italianos descobrem que os jovens do seu país não acreditam no futuro…
“MEDUSA”, Anita Rocha da Silveira (Quinzena dos Realizadores)

A julgar pelas variedade de descrições com que os veículos de comunicação (brasileiros e estrangeiros) tentaram trazer os leitores para seu artigo sobre “Medusa”, o filme denuncia muitas coisas: ascensão evangélica, machismo/sexismo, a “pressão da beleza” etc. Fora, claro, o habitual protesto contra a crise da saúde no Brasil atribuída ao governo de Jair Bolsonaro. Anita Rocha da Silveira fez um retrato singular em “Mate-me por Favor”, nem sempre interessante, que já misturava evangélicos, “teenagers”, elementos de filmes de terror e, óbvio, “coming-of-age” feminino. Descrição interesante de Jara Iañez , dos Cuadernos de Cine Cayman: “…retratar a juventude brasileira de um modo que combina luzes de néon saturadas de um universo ‘pop’ dominado por telemóveis e ‘influencers’, a um território visual muito mais obscuro e estranho que joga com a ideia de pesadelos ou sonhos alucinados que se almimenta do cinema de terror para suberveter alguns dos seus códigos”. Agradou ao Screen Daily, que disse que a cineasta “cimenta a sua reputação com uma sátira estilizada”.
“DIÁRIOS DE OTSOGA”, Miguel Gomes, Maureen Fazendeiro (Quinzena dos Realizadores)

“Quando as circunstâncias te impedem de fazer um filme, faça um filme sobre as circunstâncias”. A definição de Giovanni Marchini Camia, escrevendo para o “site” do BFI, parece definir bem a ideia do filme (muito) livremente inspirado em Cesar Pavese e que é o primeiro a aterrar em Cannes com as circunstâncias da pandemia e seu enclausarmento explicitamente abordado. Filmado como um diário ao contrário (começa no dia 22 e termina dia 6) revela-se um exercício de metalinguística (narra a rodagem de um filme prejudicada pelo confinamento) com uso de humor e, eventualmente, cenas abstratas. Dos veículos não-portugueses que escreveram sobre o filme, Camia afirmou que o filme “delicia com um agradável ‘puzzle’ português” e Jara Iañez , dos Cuadernos de Cine Cayman, qualificou-o como “maravilha”.
“INTEGRALDE”, Radu Muntean (Quinzena dos Realizdores)

Soa sugestivo esse projeto de Muntean que narra a “road trip” de jovens de classe média urbana rumo a pobres aldeias da Transilvânia. O objetivo é dos mais nobres, levar bens essenciais aos mais necessitados, mas nada mais será tão linear a partir de um acontecimento acontecido antes da chegada – quando dão boleia a um idoso e o carro fica, a seguir, atolado na lama. Quando este (interpretado por um verdadeiro habitante da região que não é ator) resolve sair pelo gelo afora e aquilo que era uma simples ação de boa vontade torna-se um constante cruzar de elementos éticos que passa por discutir a verdadeira natureza da filantropia num contraste abissal entre dois mundos. O título refere-se à uma aldeia localizada a 400 quilómetros de Bucareste, pouco habitada, inóspita e que no inverno enfrenta problemas de isolamento.
“BERGMAN ISLAND”, Mia Hansen-Love (Seleção Oficial)

A cineasta francesa faz uma espécie de voo turístico pela ilha de Faro, na Suécia, simbólico por Ingmar Bergmam ter aí vivido durante 40 anos e lá rodado seis dos seus filmes. O enredo gira em torno de um casal de cineastas (Vicky Krieps e Tim Roth) que viaja para desenvolver novos projetos e, especialmente no caso dela, buscar a inspiração perdida. No meio de natureza, calmarias, horizontes e bicicletas pequenos dramas são retratados – e uma brusca mudança na direção da narrativa quando Mia Wasikowska assume o protagonismo. Ao que tudo indica segue-se tudo dentro do estilo de Hansen-Love, que agrada muitos críticos pelas “sutilezas”, mas no qual também pode faltar drama quando ele deveria lá estar.
“FUTURA”, Pietro Marcello, Francesco Munzi e Alice Rohrwacher (Quinzena dos Realizadores)

No início de 2020 alguns dos mais emblemáticos realizadores italianos da atualidade decidiram-se pôr-se na estrada. O objetivo era conversar com jovens de diferentes classes sociais por todos os cantos do país para saber o que os jovens pensavam do futuro. As expectativas não eram muito entusiastas quando, em março, começa a pandemia na Europa… Assim, ao desalento com a falta de perspetivas no mercado de trabalho, assim como outras situações, somou-se um quadro maior de incertezas – e também o cansaço pela culpabilização dos jovens pela expansão da pandemia. Entre as críticas sinalizou-se um resultado final algo simples demais – já que não explora a fundo as inquietações da nova geração.