“West Side Story”: a paixão pelo cinema
Cultura XXI inicia uma série de postagens relacionadas aos Oscars, cuja cerimónia de premiação realiza-se a 27 de março. Depois de A Pior Pessoa do Mundo, candidato a Melhor Argumento, é a vez do musical de Steven Spielberg – com sete nomeações, incluido Melhor Filme e Melhor Realizador.
Por André Gonçalves
“Sempre quis fazer um musical. Não como ‘Moulin Rouge‘ – um musical conservador e à moda antiga onde todos falam entre si e acabam a cantar, e falam mais um pouco. Como ‘West Side Story‘ (Amor Sublime Amor, no Brasil) ou ‘Singin’ in the Rain” (Cantando na Chuva, br, Serenata à Chuva, pt) Sim, quero fazer um musical. Tenho estado à procura de um ao longo dos últimos 20 anos. Só preciso de algo que me excite.” Steven Spielberg, em entrevista à Total Film, 2004.
Steven Spielberg tinha um sonho por cumprir. Uns chamarão de mero capricho milionário. O sonho era fazer um musical, e não encontrando material recente à altura, apropriou-se em 2014 dos direitos de West Side Story. Basta um olhar atento à sua filmografia para perceber que a citação acima não é apenas uma vontade repentina. Já em 1984, o realizador tinha ousado em abrir Indiana Jones e o Templo Perdido, o segundo capítulo da franquia, com o número musical “Anything Goes”, já aí em homenagem aos clássicos.
Com os direitos comprados, faltava justificar a existência de um filme quando o original de 1961, embora não sendo um filme perfeito com as lentes de 2022 (falta-lhe representatividade, há a questão dos protagonistas serem dobrados quando cantam, etc.) tenha gerado uma legião de fãs que sobreviveu geração após geração. E para muitos conservadores, esta obra nunca seria válida o suficiente para necessitar da sua pegada, convenhamos. Há aqui, senão um anti-semitismo, uma sensação de ódio pela inveja, pela megalomania de um homem a viver o seu sonho americano e a triunfar contra todas as expectativas iniciais.
Rita Moreno, a Anita da versão de 1961, foi contactada para participar, e temendo que o seu papel fosse um “cameo”, fez questão de dizer que não faria tal aparição só por aparecer. Spielberg confortou-a de imediato. O papel da já nonagenária opera no fundo como uma reversão de género do dono da loja Doc – Valentina é aliás a sua mulher no novo filme, e esta feminização serve também para construir uma ponte mais forte entre os dois “gangs”: Tony (o Romeu desta história) continua a ser empregado da loja, e Valentina é claramente de ascendência porto-riquenha, e sobreviveu a um casamento por amor com um homem branco (não houve espaço para tragédia ali a não ser a própria morte, natural como a conhecemos). Logo, há uma complexidade adicional quando a atriz aparece, deixando de ser um mero “easter egg”, ao ponto do momento musical “Somewhere” lhe ser atribuído (canção originalmente cantada pelos amantes jovens).
Uma canção triste torna-se também aqui um grito enraivecido, embora melodioso – Moreno queria enaltecer mais a raiva, mas a preservação da melodia triunfou contra este seu capricho pessoal – sobre um sitio, num dia, onde todos percebam que o sítio de origem não os torna nem melhores nem piores que os outros.
Consegue-se perceber porque é que West Side Story permaneça tão vital como nunca quando há apenas um ano e meio atrás tínhamos a América de Trump a construir muros. A raiva e a ironia estão aqui latentes nesta adaptação de Tony Kushner (“Angels in America”) – nomeadamente a ironia destes dois “gangs” serem ambos emigrantes, tal e qual como quase todos os americanos, mas acabamos por sentir acima de tudo um sentimento que já não sentíamos há muito: aquele momento em que nós próprios nos apaixonámos pelo cinema, musical ou de outro género, é-nos refletido nesta história de amor com origem em Shakespeare.
E, sim, o esqueleto musical de Leonard Bernstein com letra de Stephen Sondheim permanece inalterado, mas a ordem das canções sofre algumas liberdades, assim como até quem as canta, ou onde as canta. Até Sondheim, i.e. quem mais conhecerá a obra de trás para a frente, terá admitido ao realizador antes de morrer que apesar de conhecer a obra de trás para a frente, esta nova versão conferiu-lhe uma sensação de não saber o que vinha a seguir.
“America”, talvez o número mais icónico da versão de 1961 (sem querer menosprezar “I Feel Pretty”, “Tonight” ou “Maria”), vê desta vez a luz do dia nas ruas de Nova Iorque, por exemplo. E Spielberg arranjou outros estratagemas mais acertados no que toca ao enquadramento de certas cenas e o uso dos cenários e “props” à sua volta, como só um mestre com décadas de carreira e milhões no bolso é capaz. Veja-se o primeiro encontro entre os amantes do centro do ginásio para atrás da bancada, claramente um local historicamente ligado a encontros românticos secretos. Se houve um filme no ano passado a mostrar porque é que me apaixonei pela sétima arte e a dar-me constantes picos de serotonina ao longo da sua duração, foi este.
Claro que West Side Story não converterá quem nunca tenha gostado do género e quem tenha críticas direcionadas sobre as suas especificidades (afinal de contas, Spielberg traz até de volta o afastar da câmara no final do número musical!). A perda será sempre de quem não conseguiu sorrir e lacrimejar pelo menos uma vez (ao mesmo tempo ou separadamente) no visionamento desta obra.