Voto fútil

Voto fútil

Maio 19, 2022 0 Por admin
Partilhar

Por Christian Velloso Kuhn

A pouco menos de cinco meses das eleições, assistimos uma campanha deflagrada para induzir  os eleitores a restringirem as suas opções de voto para a presidência da República. Essa dita campanha de “voto útil” tem como motivação anunciada a de evitarmos a continuidade do atual mandatário no governo (Jair Bolsonaro), substituindo-o pelo único adversário que vem figurando a sua frente (Lula). Por estar em primeiro lugar nas pesquisas, desse modo, mostrar-se-ia o mais viável eleitoralmente.

A necessidade de impedir a reeleição do presidente Bolsonaro vem sendo justificada muito menos por críticas à sua (falta de) gestão e seus respectivos (parcos) resultados ou por sua orientação ideológica difusa mas, sobretudo, pela ameaça deste vir a liderar um golpe de Estado. Em sucessivos episódios, Bolsonaro já pôs em cheque a credibilidade das urnas eletrônicas, inclusive contestando os resultados de sua própria eleição, quando afirmou crer que deveria ter saído vencedor já no primeiro turno. Recentemente, alimentando sua teoria da conspiração, cooptou as forças armadas para direcionarem uma série de questionamentos e sugestões sobre o processo de votação eletrônico ao TSE, devidamente esclarecida e refutada pelo tribunal.

Os defensores da tese do voto útil em Lula preconizam a adesão irrestrita e imediata, fundamentalmente daqueles que se situam no campo progressista e ideologicamente mais à esquerda. O candidato desse campo com mais destaque, situando em terceiro lugar nas pesquisas, é Ciro Gomes, justamente aquele que vem apontando severas críticas aos dois candidatos que criaram e fomentam uma polarização em torno de seus nomes, bem como um dos raros que apresenta um projeto muito claro e fundamentado para combater as principais mazelas socioeconômicas do país.

As pesquisas indicam que a retirada do nome de Ciro Gomes da disputa eleitoral elevaria os percentuais de Lula para acima de 50%, o que tenderia a garantir a sua vitória ainda no primeiro turno. Aqueles que advogam por essa alternativa sustentam que se deve evitar ao máximo a possibilidade de um segundo turno, e que uma derrota de Bolsonaro já no primeiro turno diminuiria a probabilidade de que esse viesse a atentar sobre a democracia brasileira.

O contumaz movimento, entretanto, acaba por ser paradoxal. Para proteger nosso sistema democrático, a solução apresentada é que uma parte importante do eleitorado, que não deseja votar nem em Lula e em Bolsonaro, abdique de sua escolha em prol do candidato mais democrata entre os dois. Ou seja, salvar a democracia exigiria que esses eleitores fossem obrigados a optar somente por uma alternativa, aniquilando a concorrência e, consequentemente, a representação dos anseios dessa fatia do eleitorado, o que não parece ser nada democrático. Tal qual profere o atual presidente, pregam que a minoria tem que se curvar à vontade da maioria.

A dificuldade de sustentação dessa tese não se resume apenas nesse paradoxo. Falta-lhe também embasamento racional e sobram apelos emocionais. O que impediria Bolsonaro de demover de sua suposta intenção de aplicar um golpe ditatorial, caso esse perdesse já no primeiro turno para Lula? Não alimentaria ainda mais a sua teoria negacionista de fraude nas urnas eletrônicas e elevaria a dificuldade deste aceitar os resultados eleitorais de sua derrota?

Ainda, se os eleitores se rendessem a esse apelo pelo retorno do lulopetismo ao poder, como forma de barrar o autoritarismo bolsonarista, não desencadearia uma reação dos candidatos e partidos do centro e da direita? Não poderiam vir a apoiar Bolsonaro ou mesmo os seus eleitores? O prazo de cinco meses não é demasiado a ponto de dar tempo suficiente de resposta a Bolsonaro e demais candidatos que se opõem ao PT? Não é algo que deveria ser considerado mais apropriadamente a poucos dias do pleito?

Os apregoadores do “voto útil” em Lula subestimam o antipetismo, que está fortemente arraigado principalmente na candidatura do atual presidente, mas também nos demais candidatos. Por outro lado, desconsideram a alta rejeição a Bolsonaro, que hoje beira os 60%, algo que limita significativamente a sua capacidade de reeleição, seja no primeiro ou no segundo turno.

O grande problema dessa ofensiva dos lulopetistas é que seu candidato sequer apresentou qualquer projeto, nem ofereceu uma autocrítica convincente sobre os erros dos governos petistas, requerendo de eleitores que não lhe têm como maior preferência a assinatura de uma espécie de “cheque em branco”. Se os adeptos do ex-presidente são menos exigentes nesse sentido, é difícil supor que os eleitores de outras candidaturas o sejam na mesma medida.

As eleições de 2018 demonstraram um considerável desejo de mudança, em que a maioria do eleitorado rejeitou o retorno dos partidos PSDB e PT, que dominaram os governos de 1995 a 2016. Infelizmente, a opção escolhida por essa maioria se mostrou incompetente e irresponsável, tanto para enfrentar os problemas existentes até então quanto para, principalmente, combater a iminência de uma pandemia, resultando na morte de centenas de milhares de pessoas, em dezenas de milhões de desempregados e miseráveis e na queda da renda de mais da metade da população.

Quatro anos depois, esse desejo permanece latente. Mesmo que aparentemente pareça uma minoria, essa fatia do eleitorado merece ser ouvida e respeitada tanto quanto as demais. Está consciente de seus anseios e quer tomar a decisão de sua escolha pautada em ideias e propostas que concretamente visem solucionar problemas desafiadores que constituem em uma herança maldita da atual gestão para a sua sucessão. Para isso, precisará que esses problemas sejam discutidos num extenso e transparente debate, algo que parece carecer de disposição por parte dos dois candidatos à frente das pesquisas. Sem essa oportunidade, votar poderá parecer uma mera futilidade e, ao não se sentir devidamente representado, esse eleitorado poderá formar e engrossar uma grande e barulhenta massa de oposição em um futuro não muito distante.