Uma das comédias mais geniais de sempre faz 50 anos: uma análise de “Play it Again, Sam”

Uma das comédias mais geniais de sempre faz 50 anos: uma análise de “Play it Again, Sam”

Fevereiro 21, 2022 0 Por Roni Nunes
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Dentro da série de conversas com convidados que analisam e recuperam clássicos do passado, depois de São Bernardo, A Última Sessão de Cinema e Dom Roberto, agora é a vez de uma conversa com Aníbal Santiago, que durante anos dirigiu o “blog” Rick’s Cinema, sobre essa deliciosa obra-prima de Woody Allen, (Sonhos de um Sedutor, no Brasil, O Grande Conquistador, em Portugal), que completa em 2022 o seu cinquentenário.

No início dos anos 70 Woody Allen decidiu transformar num filme uma peça sua apresentada com sucesso na Broadway, em 1969. O resultado foi um dos seus trabalhos mais geniais e que ainda hoje consegue ser extremamente divertido. O título original remete à famosa frase (nunca dita!) de Casablanca, onde Humprhey Bogart contracena com Ingid Bergman e cuja despedida no aeroporto (brilhantemente emulada por Allen aqui) é um dos momentos românticos mais icónicos do cinema.

Antecipando um recurso que usaria no magistral A Rosa Púrpura do Cairo , Allen coloca o seu protagonista, um neurótico crítico de cinema Allan Felix (Allen) abandonado pela mulher, a contracenar com Humphrey Bogart (interpreado por Jerry Lacy). Afinal, quem se não um dos grandes ícones másculos do “studio system” daria um melhor conselheiro para um homem aterrorizado na hora de conquistar uma nova mulher? Pelo caminho, no entanto, o inesperado acontece: ele apaixona-se pela mulher (Diane Keaton) do melhor amigo (Tony Roberts).

O personagem de Woody Allen é um sujeito que se dedica a ver filmes, com muitas dificuldades em sintonizar com a vida “real”. Um dos temas do filme é a vida idealizada e o seu contraste com o mundo “físico”… – tema, aliás, de grande abordagem ao longo da carreira do cineasta…

A mente de Allan conta com mais movimento do que uma corrida de Fórmula 1. Antes de algo acontecer este já está a ponderar o pior que pode ocorrer, ao mesmo tempo em que convoca figuras que povoam a sua imaginação, sejam estas Humphrey Bogart ou a ex-mulher. Raramente estas personagens são boas conselheiras, algo que é péssimo para o protagonista, mas excelente no que diz respeito ao espectador que é brindado com diversos momentos de humor que funcionam quase na perfeição.

É a faceta neurótica de Allan a falar mais alto, bem como as suas inseguranças e paixões. Em particular, a paixão pelo cinema, ou, se preferirmos, pela icónica figura de Bogart. Uma paixão que roça a obsessão e que o coloca em maus lençóis, sobretudo por aparecer ligada a uma certa idealização da vida.

Diga-se que o destino raramente faz questão de fazer a vontade ou de corresponder totalmente às expectativas das personagens interpretadas por Woody Allen, sejam estas Allan, o constantemente traído Boris Grushenko de Love and Death (br: A Última Noite de Boris Grushenko; pt: Nem Guerra, Nem Paz), Alvy Singer (Annie Hall), ou o azarado Cliff Stern de Crimes and Misdemeanors (br: Crimes e Pecados; pt: Crimes e Escapdelas) que perde a sua referência filosófica e ainda sofre um revés (in)esperado no seu “affair” com uma colega de trabalho.

O filme foi feito numa altura especial em termos da relação de uma Nova Hollywood muito cinéfila com o cinema do Studio System. Aqui um próprio ícone deste cinema entra em cena para contracenar com o protagonista…

Existe uma certa reverência para com os tempos do Studio System, um respeito que se reflecte quer nos comportamentos do protagonista, quer no diálogo que Play it Again, Sam faz com o passado, em particular, com Casablanca. Essa situação é particularmente visível tanto no início do filme (quando encontramos Allan completamente embasbacado a visionar o desfecho da icónica obra realizada por Michael Curtiz) como no final (com o protagonista a emular a atitude de Rick Blaine perante Ilsa e Victor Lazlo). Embora exista reverência, convém salientar que também existe espaço para as rupturas e uma certa dose de ironia.

A começar pelo próprio título do filme que remete para a célebre frase que nunca foi dita em Casablanca, embora seja colocada nos lábios de Ingrid Bergman. A juntar a esse “pequeno” pormenor temos ainda o desajustamento entre os comportamentos do “Bogie” idealizado pela personagem principal e o período em que se desenrola o enredo, com a faceta máscula do primeiro a raramente condizer com o estilo atrapalhado do segundo e do meio que o rodeia.

Esse ídolo másculo representado por Humphrey Bogart revela toda a fragilidade do suposto papel masculino de conquistador. No caso do protagonista, o pouco à vontade com esse papel que o leva a agir de uma forma completamente tresloucada em situações que o põe frente a frente com o sexo oposto…

Nunca é boa ideia tentarmos “encarnar” uma personagem enquanto estamos a tentar iniciar uma conversa com outras pessoas (ou em qualquer situação que não envolva representação). Muito menos tentarmos pensar como determinada figura pensaria ou iria agir perante a mesma situação.

É certo que muitas das vezes procuramos encontrar inspiração nas nossas referências, mas esta não pode ser levada ao extremo. Por sorte Allan não bebe, caso contrário, a seguir o exemplo do seu ídolo, provavelmente teria o seu fígado em mais mau estado do que a sua habilidade para provocar boa impressão.

Essas inseguranças de Allan levam-no precisamente a recorrer constantemente ao seu ídolo, Humphrey Bogart. Muito ligado a personagens duras, carismáticas e confiantes como os detectives Sam Spade e Philip Marlowe, o já mencionado Rick Blaine, ou elementos como Rip Murdock, um antigo soldado que parte em busca do seu antigo companheiro (em Dead Reckoning – br Confissão, pt Maldita Mulher – , cujo poster aparece em grande destaque na casa de Allan), “Bogie” é a antítese deste crítico e ensaísta de cinema.

Allan é neurótico, pouco optimista, tem uma autoestima pouco elevada e raramente parece estar à vontade para dialogar com mulheres ou ter primeiros encontros com estas. Desse contraste resultam diversas situações caricatas, com a entrada em cena desta espécie de fator fantástico a aparecer como um diferenciador de Play It Again, Sam.

Allen tem uma forma única de jogar com o elemento fantástico inserido dentro de uma narrativa realista. Para além deste, é o caso, por exemplo, de filmes como “A Rosa Púrpura do Cairo” ou “Meia-Noite em Paris”…

A fantasia envolve-se por diversas vezes no contexto da realidade nas obras de Woody Allen (sejam estas realizadas pelo mesmo ou contem “apenas” com o seu argumento), tanto no campo do cinema como a espaços na literatura (nomeadamente, nos seus contos).

Essa situação é particularmente notória nos exemplos mencionados, com  A Rosa Púrpura do Cairo, a remeter para um exemplo no qual o cinema e a realidade tocam-se, um pouco à imagem de Play It Again, Sam, enquanto Meia-Noite em Paris vai ao extremo de nos deixar perante escritores como Ernest Hemingway, Gertrude Stein ou F. Scott Fitzgerald, bem como de pintores como Picasso, Matisse, ou artistas maiores do que a vida e ficção como Luís Buñuel. Mas os exemplos destas rupturas não se ficam por aqui. E o que dizer da entrada em cena do coro grego em Poderosa Afrodite” ou o momento em que o próprio Marshall McLuhan entra em cena em Annie Hall e quebra todas as expectativas num momento de puro delírio?

Diga-se que a espaços essa quebra entre duas ou mais realidades, entre o presente e o passado, a arte e a vida, muitas das vezes aparece acompanhada de uma certa dose de melancolia, um pouco à imagem de Radio Days (br: A Era do Rádio / pt: Dias da Rádio, uma fita em que a importância da rádio junto do protagonista e dos seus familiares, durante a época dourada da mesma, é retratada com salpicos de nostalgia, humor e um enorme coração.

O filme, tal como a peça de 1969 que o inspirou, foram essenciais na construção do caráter de intelectual neurótico que Woody Allen celebrizaria a partir dos anos 70…

Embora Play It Again, Sam não seja realizado por Woody Allen é praticamente não impossível notar o quanto o estilo e diversos traços dos protagonistas interpretados pelo actor-autor estão em quase todos os poros do filme. Não faltam as neuroses, as inseguranças, o humor  autodepreciativo, os fracassos nas relações, as traições, a mordacidade, o gosto pela arte, as frases que facilmente permanecem na memória.

Temos ainda um humor bastante ao estilo slapstick, muito a fazer recordar obras de Allen dos anos 70 como Bananas, Sleeper (br: O Dorminhoco / pt: O Herói do Ano 2000 ou Love and Death em que o físico do intérprete é usado ao máximo ao serviço da comédia, sempre com alguns delírios e exageros à mistura.

Ou seja, Herbert Ross deixa e muito que o protagonista/argumentista tome as rédeas da fita, com o cineasta a ter o mérito de não fazer com que o seu estilo (ou falta dele) colida com o do segundo. Importa ainda salientar que Play It Again, Sam marca o início da frutuosa colaboração entre Woody Allen e Diane Keaton, com a química entre ambos a ser desde já bastante visível ao longo desta deliciosa comédia.

Nota: os títulos foram sempre apresentados no original quando eles não foram literalmente traduzidos no Brasil e em Portugal. Quando isso ocorreu eles aparecem em português.