
“Top Gun: Maverick”. O “crowd pleaser” do momento
Por André Gonçalves
Acreditem e não acreditem no “hype”. Sim, este Top Gun: Maverick, no campeonato de sequelas que não estávamos efetivamente a pedir, é uma das melhores continuações que temos visto, com sequências de ação que merecem ser visionadas no maior ecrã possível (IMAX é um investimento a considerar). Mas é também um objeto de um profissionalismo tal, produto de uma minuciosa microgestão como tentativa de agradar ao maior número de audiências possível, que acaba por de certo modo minar o que tornava o original num fenómeno de culto tão atípico.
Voemos por momentos para 1986. Estamos na América de Ronald Reagan, e os “blockbusters” de verão são já um considerável ganha-pão da indústria de Hollywood. Eis que a Paramount insiste numa jogada que poderia ter saído desastrosa: um filme de ação sobre aviadores, que tentava um apelo feminino pela história de amor. Os créditos do já falecido Tony Scott eram diminutos – contava apenas com a longa-metragem Fome de Viver com o trio maravilha David Bowie, Susan Sarandon e Catherine Deneuve. Mas foi um vídeo promocional para a Saab que selou o negócio para os produtores Jerry Bruckheimer e Don Simpson – ainda longe das parcerias multimilionárias com Michael Bay.
Scott queria fazer algo mais temperamental e negro; os produtores estavam a querer o contrário. Resultado: Tony Scott viria a ser despedido três vezes por diferenças criativas, mas segurou-se sempre até cortar a reta da meta. Em maio de 1986, Top Gun conquista o 1º lugar com pouco mais de U$ 8 milhões no fim-de-semana de abertura. Viria aaguentar outras 24 semanas (ou seja, praticamente meio ano) no top 10.

“Take My Breath Away”, tema dos Berlin, vem ajudar à massificaçãocultural de um êxito de culto improvável. Tom Cruise vinha de Negócio Arriscado (1983), é certo, mas estava ainda a formar-se enquanto a estrela que hoje conhecemos. O resto do elenco estava igualmente repleto de relativos desconhecidos que iriam explodir anos mais tarde, em parte graças ao êxito deste filme: Val Kilmer, Anthony Edwards e Meg Ryan. E depois havia uma sensação incandescente do momento chamada Kelly McGillis, fresca de filmes como A Testemunha (1985) de Peter Weir.
36 anos depois, que envolveram quase três anos de adiamentos, onde o covid-19 obviamente não ajudou, eis que nos chega Top Gun: Maverick, um filme que respira desde logo uma nostalgia pelos tempos idos, mas uma nostalgia ainda assim filtrada por um olhar do presente. Sim, o futuro”inteligente” está já aí ao lado, prestes a remeter heróis como Maverick para relíquias do passado.
Mas há também uma sanitização numa tentativa de não levantar grandes ventos para além da velocidade hipersónica dos aviões e não falamos necessariamente de uma preocupação válida para a diversidade e a representatividade, embora esta exista (e bem!). Falamos também de uma limpeza do desejo. Top Gun: Maverick volta a tentar ter uma história de amor, bastante mais curiosa, pois os anos passaram, e sob a equação romântica há agora novas variáveis (uma filha adolescente do lado do interesse feminino, por exemplo).
Mas esta história de amor falha algum erotismo que havia na versão original (homo e hetero), quase que apelando a um espírito conservador liberal – que casa bastante bem com o panfletarismo militar que permanece em centro de cena mais do que nunca desta vez, aliás. Um conservadorismo que aparenta uma certa implicação de que à medida que os anos passam, também devemos mostrar menos dos nossos corpos. Ou então, estamos a pensar em demasia, e simplesmente a puritana América não quis arriscar uma classificação “R” (para maiores de 17anos)…

Depois há um pequeno elefante na sala. Val Kilmer foi consultado para aparecer numa cena e a sua aparição, por si só, é capaz de fazer lacrimejar o mais atento dos espectadores. Mas quanto a Meg Ryan e Kelly McGillis, atrizes que caíram na mó de baixo nas últimas décadas, ora por se terem recusado a seguir as regras das cirurgias plásticas (McGillis), ora por estas cirurgias plásticas lhes terem corrido mal (Ryan), não foram contactadas. Sexismo?
O quinteto de escribas decidiu [spoiler ligeiro] matar a personagem de Ryan [/spoiler ligeiro], apesar de aparecer num “flashback” e fotos. Quanto a McGillis? Totalmente apagada do cenário. Não há uma única foto à vista. E Tom Cruise? É um super-homem, que tantas vezes recusa duplos, e que soube jogar o jogo como poucos, soube gerir a sua carreira, e como reconhecimento, recebeu este ano uma Palma de Ouro especial – como gesto de apreciação pelas sucessivas tentativas em salvar o Cinema – esse, o que só se encontra para muitos nas salas designadas para esse efeito.
Top Gun: Maverick será no fundo um fruto de anos de trabalho, onde as sucessivas franquias de Missão: Impossível serviram de escola e de inspiração óbvia para este trabalho de laboratório, onde não falta até uma nova canção em modo de pedido romântico imperativo – de “Take My Breath Away” passamos para “Hold My Hand” de Lady Gaga – talvez agrande presença “queer” que nos resta em 2022 desta saga, Cruise que nos perdoe. Mas também aí uma presença sanitizada, feita para inundar as rádios, para assim nos convencer a entrar no ouvido, mas sem o rasgo de genialidade da batida de Giorgio Moroder.
O mais irónico é que no saldo de ganhos e perdas, Top Gun: Maverick será, objetivamente, e seguindo os parâmetros canónicos do que deve ter um filme de ação, um filme mais bem conseguido que o original, mais sóbrio e polido. Também perde alguns delírios “camp” homoeróticos tão bem descritos por um ensaio crítico de Quentin Tarantino, assim como um perigo, uma magia, um romantismo, uma veia simbólica para estas interpretações ambíguas que nos faz questionar sobre se terá a mesma longevidade. O estatuto de “crowd pleaser” do momento ninguém lhe tira, isso é certo.