TOP 1964: dez álbuns que reinventaram a história do “rock”
A história do “rock” tem algumas datas particularmente marcantes com simbólicas das múltiplas viragens e agressivas rupturas que o gênero foi experimentando. Depois do ciclo 1955/1956, o ano de 1964 viria a ser o momento seguinte: num “mainstream” agora domesticado pela comunhão entre indústria e bons costumes que gerava astros como Anicette Funicello e Frankie Avalon, coube a “british invasion” liderada pelos Beatles eletrizar a molecada e por os seus pais de cabelos em pé.
Junto deles vinham criaturas mais maléficas cujos horizontes musicais retrabalhavam o “blues” em vez das mais palatáveis vocalizações do “mersey beat” – e com um “marketing” que não brincava em serviço na hora de diaboliza-los: se trata dos Stones, claro, mas também de bandas como os Kinks. O cenário nos Estados Unidos, de qualquer forma, já era tempestuoso entre os jovens cultos das universidades – que se penduravam no “folk” para se barricar nas ruas e acompanhar os negros nas procissões pelos Direitos Civis. Bob Dylan, obviamente, era o guru. Em 1964 também se pegaram as últimas ondas da “surf music” e a vertente mais divertida para um olhar contemporâneo era a do “rock” instrumental.
THE BEATLES “A Hard Day’s Night”
Na sua autobiografia, diz George Martin a propósito da fase inicial dos Beatles: “Parecia haver um poço sem fundo de canções, e muitas vezes as pessoas me perguntavam onde esse poço foi cavado. Quem sabe?” A mais sensacional usina de “hits” da História tinha o suficiente em 1964 para preencher o seu primeiro álbum só de composições próprias. Um desfile de clássicos (“A Hard Day’s Night”, “Can’t Buy me Love”, “And I Love Her”, “I’ll Be Back”) que, a meio de 1964 e junto ao delicioso filme homônimo, consolidava musicalmente a loucura da “beatlemania” iniciada com a invasão da América no início do ano. O mundo nunca mais seria o mesmo.
“Can’t Buy me Love”
THE BEATLES “For Sale”
Eventualmente o menos interessante de todos os álbuns dos Beatles, foi gravado num contexto de exaustão física e mental, onde nem o poderio da dupla Lennon-McCartney mostrou-se apto a preencher um álbum só com canções suas. Ainda assim, longe dos dias onde gravaram o primeiro disco em único dia (“Please Please Me”), “For Sale” dá início ao primeiro período de experimentações no estúdio – trazendo, por exemplo, efeitos simples, mas notórios na época, como o “fade in” de “Eight Days a Week”. O mais genial de tudo, no entanto, ficou para os “singles” – como a sensacional “I Feel Fine”, onde ecos de Bobby Parker e Ray Charles se juntavam para apresentar, segundo um orgulhoso John Lennon, o primeiro uso de “feedback” registrado numa gravação. Seis “covers” completam o material próprio, incluindo uma visceral para o “Rock’n’Roll Music” de Chuck Berry e o divertido “medley” “Kansas City/Hey Hey Hey”, de Little Richard.
“Eight Day’s a Week”
THE KINKS
Se coube aos Beatles a popularização do quarteto com guitarras elétricas a partir de uma recriação do “rockabilly”, para os irmãos Davies (Ray e Dave) ficou a gloriosa popularização do “fuzz” – onde o terceiro e finalmente certeiro “single” “You Really Got Me” apresenta toda a alegria da distorção. Dentro em pouco as chamadas “fuzz boxes” passariam a ser vendidas para facilitar a vida de todo o povo que quisesse fazer barulho. O restante era o cardápio habitual tocado com vigoroso espírito juvenil – como “Beautiful Delilah”, “I Took my Baby Home” ou “I’m Lover not a Fighter”.
“You Really Got Me”
MANFRED MANN “The Five Faces of Manfed Mann”
Em 1964 estava dada a largada para furiosos “rockers” ingleses inspirados no “blues” invadirem a indústria fonográfica e os Manfred Mann foram dos mais entusiasmantes atos. Mas não só os clássicos do “blues” estavam lá (“Smokestack Lighting”, “Hoochie Goochie”, “I’ve Got my Mojo Working”) mais as muitas “covers” típicas destes tempos como as composições originais do grupo competiam em pé de igualdade com o material – viscerais atos com letras direcionadas a mulheres malévolas que traíam e desprezavam o escriba, até que em “I’m your Kingpin” ele se torna o “boss”. Há solos de sax, de piano, de guitarras, de harmônica criando quase um proto-“jazz fusion” em coisas como “Sack O , “standard” do “jazz” de Cannonball Adderley. Na esquadra grandes músicos – Manfred Mann (teclados), Paul Jones (vocal, harmônica), Mike Vickers (guitarras, sax, flauta), Tom McGuinness (baixo) e Miike Hugg (bateria).
“I’m Your Kingpin'”
THE YARDBIRDS “Five Live Yardbirds”
1964 também é o ano de outro acontecimento – o começo discográfico deste estelar grupo de Londres que entraria para o olimpo das lides “rockeiras” por terem passado por lá a Santíssima Trindade – Eric Clapton, Jimmy Page e Jeff Beck. Neste furioso álbum gravado ao vivo sem as melhores condições sonoras só entra Clapton dos três, mais os indefectíveis Keith Relf (vocais), Chris Dreja (guitarra), Paul Samwell-Smith (baixo) Jim McCarty. No cardápio principal vinha o “blues”, claro (Howlin Wolf, Slim Harpo, Sonny Boy Williamson), somados a omnipresentes nestes tempos como Chuck Berry e Bo Diddley. As versões estendidas das músicas, num dos raros álbuns da época com músicas com mais de cinco minutos, capturavam o espírito ao vivo dos “shows” do barulhento agregado responsável por tumultos sonoros que tinham o Soho londrino como epicentro.
“Smokestack Lightining”
THE ROLLING STONES
Andrew Oldham começa a sua jogada genial de construir a fama e a fortuna de um bando de mal-encarados para contrastar com os engravatados de Brian Epstein beneficiando, não obstante, de um quinteto de músicos suficientemente aptos a mergulhar no “rock” e o “rhythm & blues” de olho nas paradas. A estas alturas, enquanto Lennon e McCartney já formam uma dupla sensacional de compositores, Mick Jagger e Keith Richards apareceram com “Tell Me” como o único rebento de intensas sessões no seu parco “flat” londrino para se tornarem compositores. Mas o melhor está em outras paragens – como nas recriações de “Route 66” ou “Carol”. Claro que esse é apenas o começo da epopeia…
“Route 66”
THE ANIMALS
Foi mesmo com a versão elétrica de “The House of Rising Sun”, que se tornaria um dos protótipos do “folk rock” que se expandiria no ano seguinte, que estes britânicos de Newcastle liderados por Eric Burdon criaram a sua via transoceânica para instalarem-se na América no grande ano da Invasão. A música saiu na Inglaterra como “single” e não consta no álbum original, que trazia, no entanto, coisas melhores – como um vigoroso naipe de “covers” do “blues” e de “rock’n’roll”. A par de Stones, Yardbirds e Manfred Mann, foi outra das bandas estreadas em 1964 perseguindo o “blues”, esse grande fenômeno entre alguma classe média britânica nos anos 60.
“Around and Around”
BOB DYLAN “The Times They Are a-Changin’”
Depois de uma estreia, em 1962, focada nas tradições mais ancestrais do “folk”, em “The Freewheelin’ Bob Dylan”, de 1963, ele alcançava o estatuto de cantor de protesto que almejara ser na linha do seu ídolo Woody Guthrie. Apesar do sucesso entre os rebeldes das universidades, no “mainstream” ele permanecia relativamente desconhecido (a regravação de “Blowin’ in the Wind” por Peter, Paul & Mary foi a que tornou a música famosa), e seriam os seus dois álbuns de 1964 a sedimentar a sua fama. Apesar disto, a sua era essencialmente “folk” estava prestes a terminar – não sem antes um álbum que trazia mais alguns hinos de protesto nos moldes do antecessor. Para além da faixa-título, que vaticinava mudanças para tempos de injustiças, ele cantava longos épicos sobre tragédia racial (a morte de um afroamericano nas mãos de um cliente de hotel é o tema de “The Lonesome Death of Hattie Carroll”), mas também econômica – como na sinistra “Ballad of Hollis Brown”, a história de um fazendeiro arruinado que mata a família e suicida-se a seguir.
“Ballad of Hollis Brown”
BOB DYLAN “Another Side of Bob Dylan”
Antes de alugar uma guitarra elétrica e dizer “farewell, my friends” aos seus acólitos do “folk”, o que faria no ano seguinte, Bob Dylan começa primeiro por despir-se da armadura de “cantor de protesto” – essencialmente dizendo que também tinha outras preocupações em mente além de revolução social. Uma delas tinha a ver com questões pessoais – como o fim do seu relacionamento com Susi Rotolo (“Ballad in Plain D”) em outro momento, trazia um poema mais abstrato e reverenciado como um dos seus grandes momentos – “Chimes of Freedom”.
“Chimes of Freedom”
THE TRASHMEN
Estes surfistas de asfalto da longínqua Minneapolis merecem uma menção honrosa por uma das mais sensacionais pérolas do surrealismo “pop” – a gloriosa “Surfin’ Bird” – uma verdadeira catarse de “riffs” ultrajantes para embalar versos sublimes como “A-well-a don’t you know about the bird? Well, everybody knows that the bird is the word!”. O restante do único álbum que lançaram traz cinco músicas próprias e compila de forma energética “covers” do gigantesco Dick Dale, de The Astronauts e The Rivingtons, os inventores da citada “Surfin Bird”. Claro que as vocalizações vindas do “duo wop” dos Beach Boys eram muito mais famosas, mas, para uma sensibilidade contemporânea, é aqui que está a visceralidade do espírito juvenil. Dois videos da música no Youtube são interessantes: um é editado a meio e o vocalista/baterista Steve Wahrer é substituído pelo comediante holandês Andre Van Duin; o outro (abaixo), trás a curiosidade de uma entrevista com Wahrer.
“Surfin’ Bird”
Desculpem, mas “Beatles For Sale” está muito longe da categoria que deu nome a esta matéria. “Help” entraria fácil no seu lugar.
Sim, o “For Sale” é dos álbuns menos memoráveis dos Beatles, mas a matéria restringe-se ao ano de 1964. Daqui a uns dias teremos a continuação com o ano de 1965 e “Help!” estará lá.
Creio que as informações destes 10 grupos foi muito bem feita. Mas eu gostaria que vocês fisessem outra lista com 10 melhores da década de 70 e 80…
Obrigado, Paulo. Sim, a ideia é avançar nos anos!