“Tár”: filme sobre assédio não cede a moralismos fáceis
Por André Gonçalves
Todd Field regressa ao cinema volvidos 16 anos sobre Pecados Íntimos (2006) e, em Tár, prova que é um dos grandes maestros da atualidade.
O filme parece em si abarcar tudo o que se passou no nosso mundo desde 2006 – nomeadamente a ascensão das redes sociais e, consequentemente, o impacto equiparado à justiça civil que estas obtiveram – do #MetToo à cultura de cancelamento. Prova, assim, justificar uma duração de mais de duas horas e meia focada numa personagem que, afinal, é ficcional – mas retratada como “uma de nós”: Lydia Tár, orquestradora de música clássica, vencedora de tudo o que supostamente havia para ganhar, embora lhe falte ali um feito para somar ao currículo, sob o qual está a trabalhar.
Só que em vez de moralismos de pacotilha, associados muitas vezes ao cinema ocidental, nomeadamente ao cinema “made in Hollywood”, Tár executa esse golpe pós-feminista de nos mostrar uma lésbica no topo do mundo a fazer o mesmo que “os outros” fazem ou fariam, fruto de uma natureza humana corrompida pela sede e fome de domínio.
Se, inicialmente, o filme confronta-nos com a crueldade de algumas das suas palavras, à medida que vamos conhecendo esta mulher e tentando perceber algumas das suas ações humanas, vamos também nós próprios a ficar num dilema entre o que defendemos e como nos defendemos, sobretudo quando sabemos que temos também alguma culpa no cartório.
Numa das primeiras cenas, no conservatório da Julliard, Lydia vira-se para um estudante da nova geração, disposto a cancelar Bach com base no seu passado pessoal, e diz-lhe que “o narcisismo das pequenas diferenças leva à mais aborrecida conformidade”, mas depois percebemos que esta visão, “verdade”, ou o que lhe queiram chamar, esconde o privilégio de quem chegou onde chegou não por uma virgindade romântica, mas sim por alguns gestos “fura-vidas”. E, sim, a pequena diferença da homossexualidade quando finalmente numa uma posição de topo (ou mesmo neste caminho mais ou menos lamacento), torna-se bastante banal por si só.
A obra foi feita a pensar numa magistral Cate Blanchett segundo o argumentista e realizador, mas creio que este não se vendeu suficientemente bem. Field consegue imprimir ambiguidade e reserva a todas estas grandes questões do novo século pós-internet nunca alinhado ou desalinhando totalmente com a sua protagonista, e coloca ainda assim a película estranhamente a respirar no meio de uma frieza que poderia facilmente ter degenerado num calculismo impossível de aturar.
Tal como Tár diz de Bach, assim Field o faz: coloca-nos as questões sem respostas prontas e limpinhas, lembrando que a Arte, na sua forma mais pura e seja ela qual for, é acima de tudo sobre o discurso – e não sobre encontrar uma solução como a Ciência o faz, por exemplo…
Embora esteja efetivamente nomeado para 6 Oscars importantes (Filme, Realizador, Atriz, Argumento Original, Direção de Fotografia e Edição) TÁR ganhou já, apenas com meses de exposição ao público, um direito à posterioridade que será alheio a este presente de premiações e picagens de ponto.