“Sick of Myself”: as piores pessoas do mundo
Por André Gonçalves
O que acontece quando deixamos de sentir que estamos a ser vistos e reconhecidos pelas nossas capacidades? A hipótese mais racional seria procurar ajuda na terapia. Mas sabemos que isso é um privilégio de alguns e reconhecer até o narcisismo que há em si mesmo é muitas vezes o primeiro grande obstáculo a ultrapassar.
“Farta de Mim Mesma” é a primeira pedrada no charco do realizador e argumentista Kristoffer Borgli que demonstra o que se passa quando a sede de ser visto ultrapassa as barreiras do “normal”. Estreada há um ano em Cannes na competição “Un Certain Regard” e com passagens por muitos outros festivais, incluindo o nosso IndieLisboa, a película chega agora em estreia simultânea no serviço “streaming” (FilmIn Portugal) e num cinema de Lisboa (Sala Fernando Lopes).
Signe e Thomas são um casal aparentemente afetivo, mas que acaba por entrar em competição um com o outro. Num golpe para roubar uma garrafa de vinho caríssima de um restaurante, ela aceita sob a condição de Thomas lhe dar crédito junto dos amigos. Resultado: ele ignora o seu pedido.
Um dia, no seu trabalho frustrantemente anónimo de café, testemunha uma mulher ensanguentada e, num golpe de frieza necessário à ocasião, consegue chamar auxílio e socorrê-la. Aí liga-se um certo “chip”. “E se?” E se for vítima, serei finalmente vista? O que posso fazer? Forçar que um cão me morda a cara? Thomas é um artista e está finalmente à beira de ser famoso – o que torna ainda mais sufocante para Signe esta absorção de atenção extra que a faz sentir como uma mera figurante da relação.
Eventualmente, esta vontade de mostrar que também é uma entidade digna de fama leva a uma automedicação que tem como efeito secundário a desfiguração da própria cara e Signe finalmente consegue a atenção que tanto desejava.
Borgli está claramente, nesta comédia negra sulfúrica, a mostrar-nos um espelho para a nossa própria sede de 15 segundos de fama (15 minutos era noutro tempo!) e o nosso próprio narcisismo latente, dos quais somos sempre culpados a partir do momento em que “jogamos” nas redes sociais e nos sujeitamos a figuras socialmente ou moralmente confrangedoras simplesmente porque queremos que olhem para nós. Mas a sátira abrange também a toxicidade das relações humanas – amorosas ou mesmo de amizade e outras parcerias – quando os egos se fragilizam.
Kristine Kujath Thorp, no papel principal, entrega-se a esta personagem arriscada sem nunca atravessar a linha vermelha da caricatura fácil. O filme vai escalando de situação em situação: para alguns espectadores, irá ultrapassar todas as medidas e cansar; outros podem entender que a repetição faz também parte da mecânica da sátira. Em qualquer dos casos, todos os que consigam chegar à meta podem validar que o filme recusa redenções de última hora e só essa capacidade de contenção emocional coloca a obra num patamar de excelência de um género ora mal apreciado por ser mal entendido, ora encaixotado como ridiculamente exagerado e portanto sempre preterido a poesias oníricas. Por isso, olhe para este espelho e arrisque a não gostar do que vê.