Roterdão, o mais radical dos festivais? Edgar Pêra e Júlio Bressane entre as novidades
O festival de Roterdão (IFFR) decorre na cidade holandesa entre 25 de janeiro e 5 de fevereiro e entre curtas, longas e instalações exibirá mais de 500 filmes. Especialmente conhecido pelo espaço quase absoluto para jovens realizadores (uns poucos nomes consagrados passam pelos ecrãs do festival) e pela preferência por ousadias experimentais, abordagens muitas vezes bizarras, um grande gosto por instalações e açambarcando um número enorme de produções de todo o mundo.
“E que tal começar um festival como o IFFR com uma visão da arte tão esplêndida, desafiante e enriquecedora”? A pergunta vem na sinopse do filme escolhido para a abertura – o norueguês Munch – aparentemente uma “biopic” nada convencional sobre o autor de um dos quadros mais conhecidos da cultura ocidental, “O Grito”. Para o cineasta Henrik Martin Dahlsbakker, o pintor era multifacetado e, para tal, decidiu entregar a sua encarnação a diferentes atores conforme aquilo que ele parecia ser num determinado momento…
Portugueses e brasileiros: Fernando Pessoa e o balanço de Júlio Bressane
O cinema português aparece representado por Edgar Pêra, que apresentou recentemente no Doclisboa a sua série de entrevistas com mestres da banda desenhada, Cinekomix!!!. O cineasta surge na Big Screen Competition, onde compete com outros 15 filmes, oito dos quais europeus, com Eu não Sou Nada – Nothingless Club, descrita como uma espécie de mergulho surrealista nos heterónimos de Fernando Pessoa. O projeto foi filmado durante um mês em Santo Tirso e inclui nomes famosos no elenco, como Miguel Borges, Albano Jerónimo e Victoria Guerra.
Outro trabalho luso importante é A Primeira Idade, de Alexander David – presente na seção Bright Future. O filme é uma alegoria passada numa ilha onde só vivem crianças às quais, uma vez chegando à idade adulta, são obrigadas a partir.
Portugal aparece ainda com Fogo-Fátuo, obra de João Pedro Rodrigues que, depois de ter estreado em Cannes na Quinzena dos Realizadores, já se configura como um dos mais importantes filmes de autor lusitano de 2022. Já nas curtas-metragens André Gil Mata apresenta Pátio do Carrasco, enquanto Mónica Lima Natureza Humana.
O Brasil, por seu lado, terá Represa, de Diego Hoefel, que aparece na seção Bright Future – um filme sobre relações familiares focado num homem que vai de São Paulo para o nordeste brasileiro depois da morte da mãe. Júlio Bressane, a estas alturas com 76 anos e uma carreira iniciada em 1966, apresenta um extenso balanço do seu próprio trabalho feito em parceria com Rodrigo Lima – A Longa Viagem do Ônibus Amarelo.
Nas seções de curtas, surgem Remendo, de Roger Ghil, Casa de Bonecas, de George Pedrosa, Escasso, de Clara Anastácia e Gabriela Gaia Meirelles, Procuro Teu Auxílio para Enterrar um Homem, de Anderson Bardot e Visão do Paraíso, de Leonardo Pirondi – para além de 20 títulos no mercado de coprodução.
James Ivory, a Índia e a extrema-direita
Na seção Cinema Regained, um James Ivory com atuais 94 anos é repescado em duas situações: no muito pouco conhecido telefilme que rodou em 1975, Autobiography of a Princess, e no último, lançado no final do ano passado e realizado em parceria com Gilles Gardner, A Cooler Climate.
O primeiro trata de uma princesa indiana exilada em Londres que passa a vida a revisitar imagens do passado e anteriores às reformas socialistas de Indira Gandhi; o segundo debruça-se sobre imagens encontradas por Ivory feitas no Afeganistão em 1960 para um documentário que nunca foi terminado.
A propósito da Índia, Roterdão dedica este ano um extenso foco à cinematografia indiana tendo como o pano de fundo os últimos 30 anos e a questão: “A vitória institucional dos grupos hindus nacionalistas de extrema-direita e a perseguição das vozes dissidentes são um sinal a forma que as coisas vão tomar – e não apenas na Índia?” 20 filmes tentam responder no “Focus: the Shape of things to Come?”
De Aldo Moro aos Jogos Olímpicos
O veterano Marco Bellochio surge com a série em seis capítulos que produziu para televisão – onde retoma um dos temas mais dramáticos da história italiana das últimas décadas – o sequestro e o assassinato de Aldo Moro. É o segundo olhar do cineasta sobre o tema: em 2003 ele apresentava Bom Dia, Noite – onde o crime era visto pelos olhos de uma mulher das Brigadas Vermelhas. Desta vez, no entanto, em Esterno Notte o pano de fundo amplia-se consideravelmente e o realizador busca unir uma série caleidoscópica de eventos sobre este episódio dramático.
Outra cineasta experiente, Naomi Kawase, recebeu o inesperado convite por parte do comitê organizador das Olimpíadas no Japão para produzir dois filmes de duas horas sobre o tema. Saiu-se com um inesperado e sensível olhar (Official Film of the Olympic Games Tokyo 2020 Side A) sobre as vicissitudes do mundo dos atletas – numa obra que tem transcendido o seu desígnio inicial e exibido em diversos festivais.
Por fim, mas não menos importante: artistas e mostras individuais
O também japonês Yuasa Masaaki, por seu lado, vem sendo um dos destaques da inesgotável animação do seu país no século XXI e vai beneficiar da exibição de vários dos seus trabalhos – assim como a veterana cineasta húngara Judit Elek, cuja carreira começou nos anos 60.
Bastante interessado em instalações e em outras formas de arte, o festival investe numa série de mostras. Uma é de Steve McQueen, que anda sumido das longas-metragens nos cinemas desde Widows (para um futuro próximo há um filme sobre a 2ª Guerra Mundial com Saoirse Ronan intitulado Blitz), aparece com a instalação Sunshine State. Trata-se de dois ecrãs postos próximos um ao outro e que trabalham com imagens de The Jazz Singer, o primeiro filme com as falas sincronizadas da história do cinema.
Outra é dedicada à norte-americana Stanya Kahn, cujos trabalhos em vídeo e cinema também incluem desenhos, escrita, performance, escultura e instalação – frequentemente diluindo as fronteiras entre ficção e documentário. Radicalmente experimental é o seu conterrâneo arc, homem que propõe uma multiplicidade de experiências para desafiar o espectador.
Tiger Competition e Bright Future são as principais seções competitivas, enquanto Harbour, evocativa da vocação portuária da cidade, Cinema Regained e Limelight são panoramas – esta último abrangendo novos projetos de nomes consagradas, como Albert Serra e Alexander Sokurov.