Revisitando os Oscars: “Parasitas” e o cheiro da pobreza
O filme foi o grande vencedor de 2019, ano no qual também venceu a Palma de Ouro em Cannes.
A Coreia do Sul talvez não tenha favelas, mas terá a sua própria quota de ruas estreitas abarrotadas de construções precárias e comportamentos não muito recomendáveis por parte do seu extrato de “parasitas”. Neste caso trata-se de uma família inteira que, de preguiçosos (o “patriarca” é apresentado a dormir no chão numa tarde quente) se verão brevemente convertidos nos mais desenvoltos vigaristas.
Criar uma fábula da clássica luta de classes com contornos “gore” na medida em que o enredo evolui do divertido para a “loucura” foi um dos atrativos para o cineasta sul-coreano de The Host e Snowpiercer – que, entre outras fontes de inspiração, incluía a sua própria experiência como tutor numa família riquíssima – para além do famoso caso das irmãs Papin. Estas foram duas criadas francesas dos anos 30 do século passado cujos atos renderam até mesmo estudos de gente como Jean Genet, Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir e até Jacques Lacan – em cujos passeios intelectuais tentavam enquadrar a citada contenda entre ricos e pobres para explicar os desenvolvimentos do caso.
Enquanto a família pobre descobre finalmente uma forma de sair da cave (o baixíssimo extrato) para a mansão (um rico cenário de jardins e exuberante arquitetura) Bong Joon-ho usa de artifícios sugestivos para elaborar não só as impossibilidades desse progresso (as frequentes alusões dos ricos ao “cheiro” dos membros da família pobre) como uma sequência brutal de uma inundação – a qual significa, de um lado, o desespero para milhares de desabrigados e, de outro, o “fim do calor horrível” para a mulher rica.
No final, com a confusão instalada, Bong sai pela tangente de uma lição moralista que se adivinharia horrenda – onde acaba nem por julgar nem justificar ninguém e, principalmente, não recorre à vitimização insuportável que inunda esses tempos. Os ricos, os quais bem podem ser os “parasitas” do título, tampouco são mostrados pela luz grosseira do preto-no-branco – aliás, até parecem boas pessoas…
Como fica o capitalismo nisto tudo, no fundo a única forma histórica que permitiu algum tipo de ascensão social ao longo dos tempos e que, não obstante, está longe de solucionar o problema das desigualdades? Curiosamente, o patriarca da família pobre não é um completo inútil (pelos termos burgueses), mas vem de vários negócios fracassados – portanto uma verdadeira vítima do interior do sistema e não um “outsider” e “vagabundo” por princípio.
No final, e sem revelar muito, tampouco a esperança de ascensão é perdida – mantendo-se uma obstinada persistência mesmo depois do completo caos que às tantas se abate sobre toda a gente. Por outras palavras, o sonho de “self made man” continua como a única hipótese possível.