Dez filmes (americanos) de 1990 que valem a pena rever

Dez filmes (americanos) de 1990 que valem a pena rever

Agosto 13, 2023 0 Por Roni Nunes
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Em 1990 havia uma considerável produção de filmes ao redor do mundo, especialmente na Ásia (brevemente postaremos um artigo sobre filmes não-americanos). A meio da década o sistema de distribuição mundial nas salas ficaria quase totalmente dominado pelos seis grandes (Disney, Warner, Fox, Universal, Sony e Paramount) – que também estavam ligadas a todos os outros formatos de consumo de filmes – TV por cabo, VHS, televisão, DVD etc.. No início da década ainda era possível encontrar grandes independentes – como a Castle Rock, a Morgan Creek, a New Line, a Orion e a Miramax, mas todos seriam incorporadas ao longo dos 90s. 

Em Hollywood, entre vários filmes famosos menos interessantes, houve cineastas de topo em grande forma, como Francis Ford Coppola, Martin Scorsese, os irmãos Coen, Paul Verhoeven, Tim Burton e David Lynch – assim como o cinema mais alternativo beneficiava de um dos melhores filmes de Abel Ferrara. Dentro do “fait-divers” mais ligeiro, Adrian Lyne elevou a fasquia do seu universo habitual e produziu um filme poderoso, enquanto John McTiernan e Rob Reiner traziam alguns filmes populares marcantes.

GODFATHER III (“O Poderoso Chefão III”, br, “O Padrinho III”, pt)

Num ano em que muitos grandes realizadores, conforme a lista abaixo, resolveram contar a história de criminosos imersos nas suas próprias dinâmicas internas e onde a autoridade instituída aparecia como corrupta (“Miller’s Crossing”), ausente quase até o fim (“Goodfellas”) ou como antagonista dificilmente mais empática do que os próprios bandidos (“King of New York”), no filme de Francis Ford Coppola vive-se o centro de uma dolorosa “mea culpa” de um gângster. Ele procura a redenção através da igreja, cuja autoridade máxima, o Vaticano, dificilmente poderia lhe dar respostas por ela própria estar completamente corrompida. Para a construção nesta pouco simpática mostra de corrupção generalizada dentro do clero, Mario Puzo e Coppola inspiraram-se em dois eventos verídicos – a morte muito suspeita de João Paulo I, que durou pouco mais de um mês como papa, em 1978, e no escândalo envolvendo o Banco do Vaticano em 1982.

GOODFELLAS (“Os Bons Companheiros”, br, “Tudo Bons Amigos”, pt)

Os créditos em forma de linhas são aspirados nesta violenta história de paranoia e velocidade em ritmo de cocaína. Martin Scorsese segue o criminoso vivido por Ray Liotta, que perambula para lá e para cá com o seu bando de carniceiros (Robert de Niro e Joe Pesci) às voltas com negócios com drogas – contra todas as advertências de Pauli (Paul Sorvino), o líder do bairro. Scorsese imprime um ritmo acelerado não só para falar de criminalidade, mas para sublinhar a vertigem do poder – que é aquela que fascinava um garoto cujo a primeira fala é “sempre quis ser um gângster”. Mais adiante ele dirá que as pessoas comuns eram uns otários metidos nas suas contas mensais e trabalhos ordinários… Os personagens saíram todos de uma história verífica escrita por Nicholas Pileggi (“Wise Guys”), que coescreveu o argumento.

MILLER’S CROSSING (“Ajuste Final”, br / “História de Gângsters”, pt).

Bem ao gosto dos irmãos Coen, Tom (Gabriel Byrne) é um homem que aposta no errado quando tudo podia estar certo. O chapéu que levita na floresta sobre os melancólicos acordes de Carter Burwell durante a abertura percorrerá todo o filme, eventualmente representando o seu empenho em agarrar a sua própria identidade diante as encruzilhadas múltiplas (matar ou não matar, escolher um lado da guerra, investir no relacionamento ou não) que se lhe apresentam. Tom é o conselheiro do chefão do submundo da cidade (Albert Finney) e compensa em inteligência o que lhe falta em uso de testosterona. No meio da confusão está a pouca virtuosa Verna (Marcia Gay Harden) – não só o pilar de desastres efetivos como o do caos que se instala na cidade. Dos quatro filmes desta lista que evocam gângsters a viverem segundo as suas próprias leis, este é mais nostálgico e evocativo.

KING OF NEW YORK (“Rei de Nova Iorque”, br, pt)

Tudo funciona neste que é um dos melhores filmes de Abel Ferrara – principalmente o enorme carisma dos atores que dão vida a um furioso duelo entre bandidos (para além de Christopher Walken há Lawrence Fishburne, Paul Calderón, Giancarlo Esposito) e polícias (David Caruso, Wesley Snipes, Victor Argo). Ferrara coloca os seus criminosos acima de uma mera litania moral sobre “bons” e “maus” e onde, num registo quase contemplativo, situa a síntese moral da grande hipocrisia ligada às drogas no confronto final em que a filosofia suspende a ação e Frank diz ao seu implacável perseguidor, o polícia vivido por Argo: “Vocês pensam que por me caçarem vão parar o que faz as pessoas tomarem drogas? Este país gasta $100 mil milhões por ano a apanhar ‘mocas’. E não é por minha causa, todo o tempo que perdi na prisão… as coisas ficaram piores. Não sou o vosso problema. Sou só um homem de negócios.

WILD AT HEART (“Coração Selvagem, br; Um Coração Selvagem, pt”) (imagem de abertura)

Suspensa num universo de fábula ocasionalmente sacudida por violentos jorros de “ketchup” que incomodou alguma audiência da época, esse controverso vencedor da Palma de Ouro mantém a sua graça – especialmente na romântica “road trip” dos protagonistas (Nicholas Cage / Laura Dern) regadas a muito sexo com filtros coloridos e os pesados acordes dos metálicos do Powermad. Com criminosos quase de fantasia (em particular o sinistro/anedótico Bob Peru, vivido por Willelm Defoe) e uma aparição da “fada boa do Oeste”. O filme é lançado entre um dos melhores de David Lynch (“Blue Velvet”) e um dos grandes momentos da história da TV nos 90s – a série “Twin Peaks”. Inesquecível a sequência delirante do acidente, onde uma Sherylin Fenn moribunda procura uma carteira em meios as escombros e sob os acordes da versão instrumental de “Wicked Game”, de Chris Isaak.

JACOB’S LADDER (“Alucinações do Passado”, br; “BZ – Viagem Alucinante”, pt)

A Guerra do Vietnam não foi só horrível para quem lá esteve, mas continuou a inspirar os mais diversos terrores nos universos mais amenos da 7ª arte. A milhas do “soft porn” que o consagrou nas bilheterias (“9 ½ Semanas de Amor”), Adrian Lyne criou um pesadelo infernal a partir de visões cada vez mais presentes e violentas que vão sendo experimentadas por um veterano de guerra (Tim Robbins). Às tantas mistura-se tudo – realidade, delírio e um estado “pos-mortem” que passam a tornar-se quase indistinguíveis. Particularmente de respeito é a sequência arrepiante onde um fragilizado Robbins percorre num passeio circular de maca os vastos corredores de um hospital, cercado de humanos enlouquecidos e pedaços de membros e outras iguarias sangrentas espalhadas pelo chão.

EDWARD SCSSISORHANDS (“Edward Mãos de Tesoura”, br, pt)

Os anos 50 nos Estados Unidos sediaram o grande fenómeno da suburbanização – uma nova forma de reorganização do espaço urbano da sociedade cada vez mais enriquecida do pós-2ª Guerra. Palco perfeito para a mitologia ordeira das casas com relvados situados em vastas “boulevards” com palmeiras, também inspiraram Tim Burton (como Guillelmo del Toro em “A Forma da Água”, muitos anos depois) para instituir a subversão em forma de um rapaz com mãos de tesoura vindo da montanha onde se desenha abaixo das nuvens o castelo gótico de universos imaginários. Edward (Johnny Depp), ao contrário do que se poderia esperar, é inicialmente aceito pela comunidade – com as suas tesouras sendo muito itens para lançar uma teia de diversidade pela cidade – que vai dos cortes de cabelos das donas-de-casa aos jardins com árvores mirabolantes. Claro que tanta diversidade só pode dar em caos – e o culpado deste tem que ser aquele que é o diferente.

TOTAL RECALL (“O Vingador do Futuro”, br; “Desafio Total”, pt)

Douglas Quaid (Arnold Schwarzenegger) é um homem pacato (apesar de acordar com a Sharon Stone ao lado dele) que sonha estar “destinado a grandes feitos”, mas acaba mesmo é por comprar uma memória da empresa Recall. Esta vende sonhos virtuais exatamente para pessoas como ele. Mas algo corre mal com o “chip” da aventura marciana que ele compra e o que é real e o que é virtual passa a ser bastante difícil de discernir. Das quatro obras-primas feitas por Paul Verhoeven quando chegou a Hollywood (“Flesh + Blood”, “Robocop”, “Basic Instinct”) esse é o mais “pop” e menos radical – especialmente comparada com “Robocop”, até hoje um dos filmes mais iconoclastas feitos com grandes capitais dentro do próprio sistema. Ainda assim, não há em “Total Recall” nenhuma hipótese do governo, do Estado ou seja qual for o poder instituído ter um papel menos do que terrivelmente maléfico.

THE HUNT FOR RED OCTOBER (“Caçada ao Outubro Vermelho”, br / “Caça ao Outubro Vermelho”, pt)

O mais leve dos filmes desta lista é um dos últimos grandes filmes de espionagem feitos. Há menos de um mês do lançamento do filme, o Politburo russo proscrevia o Partido Comunista, assinando a sentença da velha União Soviética cuja derrocada assinalava o fim da Guerra Fria. Sem maiores problemas por parte do produtor Mike Neufeld, o enredo de Tom Clancy que inspirou o filme foi empurrada para 1984 e situada momentos antes da chegada ao poder de Mikhail Gorbachev. A complicada e movimentada história de uma alta patente da Marinha soviética que decide desertar desviando da sua missão um submarino que tinha a capacidade de ficar inalcançável pelos sonares garante a diversão. Com russos na sua caça de um lado, americanos de outro, cabe ao agente Jack Ryan (Alex Baldwin) tentar salvar a destruição do almirante Ramius (Sean Connery). Na realização John McTiernam.

MISERY (“Louca obsessão”, br; “Misery – O capítulo final”, pt)

Kathy Bates saiu do anonimato para o Oscar de forma fulminante – provavelmente por ter ganho aqui a oportunidade para exercitar aquele que é o maior trunfo do filme: uma personagem que oscila entre a doçura e a psicopatia, a fragilidade e a solidão, a impotência e um empoderamento violento. Quase todo passado entre a dinâmica que estabelece com James Caan, um escritor subitamente nas suas mãos numa casa nas montanhas depois de um acidente. Para piorar ele escreve os romances de cordel que a fazem sonhar e o filme concede o maior dos signficados quando esta solitária dona de casa fã de Liberace e com bibelôs de animais ordenados na mesa diz ao escritor: “você não sabe o que significa uma pessoa como eu perder alguém como você”. Stephen King gostou desta adaptação de Rob Reiner ao seu livro, ele que já havia implicado com Brian de Palma e Stanley Kubrick…