Quando a ditadura de 64 financiava comunistas: 50 anos de “São Bernardo”

Quando a ditadura de 64 financiava comunistas: 50 anos de “São Bernardo”

Janeiro 2, 2022 0 Por Roni Nunes
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São Bernardo, de Leon Hirszman, é um dos filmes mais importantes da história do cinema brasileiro. 50 anos depois, dentro de seu estilo militante, continua altamente recomendável. Para um mergulho no seu contexto de produção, nas suas opções estéticas e nos seus paradigmas ideológicos, o Cultura XXI contou com uma preciosa conversa com o crítico, professor e editor do “site” brasileiro Papo de Cinema, Marcelo Müller.

Inspirado no clássico literário de Graciliano Ramos, a história gira em torno de um homem de negócios implacável (Othon Bastos, magnífico), que de uma origem miserável acaba por realizar o seu grande projeto – comprar a fazenda de São Bernardo. Sua vida se complica, no entanto, quando decide “adquirir” (a palavra é essa…) uma esposa (Isabel Ribeiro) para juntar ao seu ideal de família senhorial. Ocorre que, diferente dos seus peões, capangas e animais, ela não é propriamente fácil de manejar.

Filmado com distanciamento dos protagonistas, São Bernardo apresenta belos planos apoiados na fotografia de Lauro Escorel, enquanto a originalíssima participação da música de Caetano Veloso funciona como uma espécie de “comentário” à tragédia que se desenvolve. Sem letras nem instrumentos de fundo, baseia-se em fonemas entoados à moda dos repentistas nordestinos.

A obra do cineasta coloca outras questões que vão além dela própria: como foi possível no auge das torturas e assassinatos do governo Médici a Embrafilme ter sido criada e o seu primeiro projeto realizado por um assumido comunista? Como um governo proibiu o próprio filme que ajudou a financiar, para liberá-lo meses depois, mesmo sendo ele contra todos os pressupostos ideológicos que defendia, e vê-lo ganhar prémios em festivais internacionais? 

Da interminável lista de paradoxos do regime militar, toda a relação do governo com a Embrafilme é mais um deles – uma longa lista de estranhas decisões e ferozes combates que decorrem durante todos os anos 70 – particularmente sob a presidência de Roberto Farias.

Bertold Brecht defendia a “técnica do distanciamento”, onde os personagens ficavam propositadamente afastados do público para obrigar que esse refletisse objetivamente sobre o significado do que viam, ao invés de uma mera e inconsciente identificação com os personagens. Acha que a inspiração de Leon Hirszman para filmar seus personagens à distância vem daí? Acha que era esse efeito que ele pretendia?

A adaptação do São Bernardo é muito fiel ao livro. Uma vez eu entrevistei o Othon Bastos e ele disse que, inclusive, durante o “set” o Leon andava com o livro na mão. Para ele era muito importante ter uma proximidade com a obra que ele apresentava num suporte audiovisual. E, no livro, esse distanciamento que citas já está presente.

A partir do momento em que temos essa distância o espectador não é colocado num lugar onde é levado a simpatizar com o personagem. Não temos um protagonista que fica barganhando com boas ações e atitudes heroicas para que gostemos dele. Inclusive, não nos identificamos em nada com o Paulo Honório – mesmo que o filme deixe muitas portas abertas para que a gente entenda ele como um personagem trágico.

Ele é um subproduto desta lógica do oprimido, para trazer à tona Paulo Freire, cujo sonho é se transformar em opressor e exercer o poder: ele passa uma parte da vida sendo oprimido por uma lógica de servilismo capitalista.

Assim, ele é complexo porque também é uma vítima, não no sentido do coitadinho, mas na forma em que é um subproduto deste sistema que se retroalimenta, que vai construindo mais “Paulo Honórios” para que sejam os opressores. Neste sentido há uma curva quase pedagógica com os 7 prisioneiros, lançado recentemente pela netflix. 

O cineasta também usa planos fixos, bonitos e bem compostos, ao mesmo tempo que explora vastamente o vazio da casa senhorial, com poucos adornos, muitos corredores e profundidade de campo… O visual situa-se numa dimensão paralela que é a narrativa em “off”, que tanto contam a história como traduzem os pensamentos do protagonista. Como analisa essas opções estéticas?

Primeiro era uma necessidade de produção, que tinha orçamento muito baixo e pouquíssimo material. Nesta entrevista o Othon disse que algumas cenas chegavam a ser ensaiadas durante cinco horas. Naquelas conversas à mesa, por exemplo, o plano é fixo e longo.

O motivo inicial desta escolha, portanto, vem de uma contingência de produção, ele não tem essa hipótese de camuflar pelo corte. Então os personagens e os atores realmente têm muito tempo, todo o plano é muito bem pensado. O mais interessante é que toda essa minúcia, toda essa complexidade na construção visual, nunca é excessiva, tudo é assimilado como linguagem.

E tu colocas muito bem aqui a questão paralela, do “off”, e como essa dimensão é interessante. Normalmente esse recurso é utilizado como uma muleta para fazer com que o espectador pense determinadas coisas tornando-o próximo e cúmplice do protagonista – o que aqui não acontece. Nesse “off” ele está se confessando com a gente, mas não pede perdão, é pura e simplesmente uma confissão.

O elemento desestabilizador nas contas do dono de São Bernardo é a mulher – e o relacionamento entre ambos marca a segunda parte do filme. Mas ela o desestabiliza não por enfrentá-lo abertamente, mas ser culta e ter consciência social, alguém que não se podia domar através da simples brutalidade hierárquica…

Eu concordo com o que tu colocas na pergunta, ela não é um elemento desestabilizador por confrontá-lo, mas já o é muito antes, desde que entra em cena. Em primeiro lugar porque em nenhum momento ele demonstra desejo – nem sexual e nem afetivo. O que ele está fazendo é seguir uma convenção: o que se espera de um senhor de engenho é que ele seja casado e tenha uma família. 

Não vemos em nenhum momento entrando questões afetivas porque ele está só construindo um protocolo – de acordo com o que ele elaborou no seu no imaginário sobre o que é ser um homem bem-sucedido. Então quando ela começa a desempenhar uma função que está longe do meramente ilustrativo, ele começa a se desestabilizar. Na cabeça dele, ela servia para cumprir um papel naquela relação.

E, claro, quando ela vem com ideias que subvertem o que ele imagina como o mundo ideal, como as de igualdade social, de levar educação para aquele gente da aldeia, ela não está confrontando apenas o que ele pensa da vida, mas todo o sistema que levou-o a querer se tornar num opressor. Portanto, se tu levas educação para estas crianças, e chamamos aqui de novo Paulo Freire, os sonhos delas não serão se transformar em opressoras, mas antes militarão segundo uma lógica de igualdade.

Hirszman tinha uma forte vocação militante e filmava numa altura em que os sonhos revolucionários ainda estavam muito presentes. Para um olhar de hoje talvez o final represente uma cessão a um discurso mais panfletário, contrariando a forma mais sutil com que o cineasta tinha desenvolvido a sua denúncia social até chegar ali… Concorda?

Bom, não concordo muito. O Leon não tinha receio nem pudor de ser panfletário, de deixar muito claro que os filmes dele eram panfletos que representavam o seu posicionamento político. Na sua estreia, com A Falecida, está mais implícito dentro da crónica de costumes do subúrbio carioca. Quando ele vai depois para o Garota de Ipanema, que é um OVNI não só na carreira dele como no deste Cinema Novo mais engajado, a questão política entra de outra maneira no retrato de jovens de classe alta.

Em filmes como São Bernardo, Eles não Usam Black-Tie e ABC da Greve, no entanto, está muito escancarado esse posicionamento político. O “Black-Tie”, que é o meu filme favorito do Leon, é de um enunciado muito forte, de personagens complexos que não têm uma ambiguidade política, mas antes uma dualidade moral. Politicamente são muito claras, sabemos que lugares representam, a sua função social.

Então esse encerramento do São Bernardo é muito coerente com este pensamento, até porque foi o mais abertamente político do pessoal do Cinema Novo. O Glauber Rocha, por exemplo, era mais alegórico. O Leon, inclusive, queria se aproximar de uma ideia de comunicação com o público. Não são filmes de difícil assimilação, como os Glauber. Essa frontalidade, essa clareza, são muito comuns no cinema dele.

Mesmo com conteúdo fortemente político, de denúncia social e antipatia explícita pelo capitalismo, o filme foi o primeiro a ser distribuído pela recém criada Embrafilme – no auge da repressão do regime ditatorial… Como se explica essa enorme contradição?

É muito louco a gente pensar nisso,  de que o filme era o primeiro distribuído pela Embrafilme e chegou a ficar retido pela censura entre seis e sete meses, o que provocou a falência da Saga, que era a empresa produtora da qual o Leon era um dos sócios. E isso aconteceu em vários outros momentos, especialmente nos anos 70.

A Embrafilme, apesar de ser de economia mista, era subordinada ao Estado. Mas isso não acontece de modo vertical, ou seja, o governo manda e ela obedece. Ela tem certa autonomia nesse processo. Tanto que o Roberto Farias foi um dos seus principais presidentes.

Poderia se falar horas sobre a relação conflituosa da Embrafilme, onde havia gente de pensamento progressista, com os militares. É um sintoma de um país em crise. Toda a Nudez Será Castigada, por exemplo, foi censurado no Brasil, tinha chancela da Embrafilme e estava representando o país em festivais internacionais. Esse tipo de coisa acontecia com certa regularidade.

Nos anos 70 havia um desejo dos militares em construir um cinema de cunho nacionalista, ufanista. É disto que vem, por exemplo, o Independência ou Morte, a ideia de celebrar os nossos heróis etc.  Mas depois temos filmes altamente críticos e políticos, como o São Bernardo ou Os Inconfidentes, do Joaquim Pedro de Andrade, que era sobre um herói nacional, o Tiradentes, mas com uma visão completamente diferente daquela que oficialmente se pretendia…