Pasolini, centenário: “O Evangelho Segundo São Mateus”
Pier Paolo Pasolini nasceu em Bolonha, em, 1922. No ano do centenário do seu nascimento Cultura XXI apresenta uma série de artigos sobre os seus filmes.
Em 2015 um jornal do Vaticano considerou este o “melhor filme sobre Cristo já realizado”. Que tal façanha, ecoando um consenso que veio desde o tempo do seu lançamento, seja obra de um ateu, seria surpreendente – ou não se tratasse de mais uma obra de Pasolini a cristalizar-se como um reflexo de suas profundas inquietações existenciais, políticas e sociais.
O filme segue Jesus Cristo desde o seu nascimento até a sua ressurreição. A variedade de “closes”, os “diálogos silenciosos” através das expressões, as paisagens – das ruidosas e povoadas mas, principalmente, das silenciosas e vazias, tudo converge para dar ao filme uma intensa solenidade. Pelas rochas, montanhas e terras áridas transita o Messias, seguido pelos apóstolos. As pequenas histórias recriam os enredos elementares conhecidos por todos aqueles educados dentro do Cristianismo – o milagre da multiplicação dos peixes, Jesus a caminhar sobre a água, a traição de Judas etc.
Tendo Jesus chegado à fase adulta, os diálogos esparsos do primeiro terço dão lugar a um longo monólogo, onde o tom minimalista do ator não-profissinal Enrique Irazoqui (um estudante comunista espanhol que estudava Economia em Itália na altura) servem para conceder a devida grandeza àquele que é o grande trunfo e objetivo de Pasolini: a beleza do texto evangélico. Para o realizador marxista, interessava sobretudo a poesia deste trecho da mitologia cristã – segundo a ciência escrito em grego (e não em aramaico, como gostam de pensar os crentes) por um autor anómimo (e não por um apóstolo chamado Mateus) entre 70 e 120 d.C.
Poesia sem religião, religão com poesia: o poder da palavra
O projeto, surgido curiosamente depois dos escândalos envolvendo uma abordagem satírica da religião na curta-metragem La Ricotta, lançada um ano antes, foi casual: estava Pasolini no quarto de um mosteiro para um evento para o qual tinha sido convidado pelo papa João XVIII (a quem o filme é dedicado) quando o congestionamento do trânsito em função da presença do papa na localidade de Assissi impossibitou a deslocação do cineasta. Ficou assim a sós no seu recinto com o Novo Testamento, o qual acabou por consumir o seu imaginário a ponto de pôr de lado os seus outros projetos da altura.
Não interessava a Pasolini desconstruir historicamente essa figura sem cujo “story telling”, contado e recontado através dos séculos, seria mais um dos milhares de profetas que circularam pelas terras israelitas durante centenas de anos. Talvez por isso o filme emocione e agrade os crentes – especialmente aqueles cujas sensibilidades não são dependentes das fórmulas sentimentais dos grandes heróis da Bíblia “hollywoodianos”. Mas e os não-crentes?
Mitologia cristã para não-crentes
Ainda hoje o filme impressiona pela aridez de sua abordagem místico/neorealista – seco e radical como uma existência monástica no deserto. Pasolini, enquanto autor do argumento, propõe uma aproximação que confere aos escritos do Evangelho uma poderosa consistência, onde o valor da palavra é único e em consonância com esse Jesus austero, para quem apenas as crianças lhe merecem um sorriso e alguma condescendência.
Expulsando comerciantes (e marxistas…) do templo: a pobreza real
Por estas alturas, o marxismo ia dando sinais de desgaste. Pasolini compreendia que este sistema filosófico-intelectual estava se dissolvendo de forma irrevogável na imensidão do alcance das práticas e valores pequeno-burgueses.
Ao mesmo tempo, tal como o mergulho na vida do subproletariado, com os seus expedientes de burla à lei e a sua moralidade (ou falta dela) incómoda, tinha perturbado os seus pares de esquerda (ver Accattone e Mamma Roma), a radicalíssima viragem rumo a um filme de textura mística mostrava novamente um realizador fiel a si próprio. Se Pasolini considerava-se um marxista, certamente agradar os seus pares estava longe de ser um dos seus objetivos.
De resto, ele não via qualquer contradição na sua abordagem – duramente atacada, por exemplo, em Paris, pelos marxistas – que viam uma cedência do cineasta à religiosidade mística (o ópio do povo…) – e que mereceu de Sarte um sardónico comentário dito num encontro entre os dois: “Estaline ressuscitou Ivan, o Terrível; Cristo ainda não foi reabilitado pelos marxistas”.
Para o cineasta, pelo contrário, o misticismo e a crença nos milagres eram atributos das mentalidade popular e falar neles era aproximar-se das populações mais pobres.. Por isso é mesmo é que Evangelho Segundo Mateus é rodado em pequenas cidades do sul da Itália – cuja pobreza real contrastava com o comércio omnipresente que o cineasta encontrou nos antigos caminhos da Palestina.