Para que (ainda) serve a crítica de cinema?

Para que (ainda) serve a crítica de cinema?

Dezembro 6, 2023 1 Por Roni Nunes
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A natureza da crítica vem experimentando grandes transformações nos últimos anos – inevitavelmente acompanhando a própria evolução da experiência cinematográfica. Com a revolução tecnológica que possibilitou a internet, muito mais gente escreve sobre cinema – retirando o monopólio de especialistas ligados a grupos de comunicação tradicionais.

A estas alterações, soma-se o complicado problema dos agregadores de críticas – em especial o Rotten Tomatoes, com o seu vasto espectro de “inclusões”, algumas das quais duvidosas, também têm condicionado a forma como a crítica é percebida pelos espectadores.

Paralelamente, certos temas vindos da perspetiva identitária, como aquilo que no Brasil se designou pejorativamente como “lacração”, tem polarizado as guerras nas redes sociais e cujas polêmicas têm sido impulsionadas pelos veículos de comunicação tradicionais com o claro intuito de obter “views”.

Nesta conversa com um dos críticos mais prolíficos do Brasil, Marcelo Muller, subeditor do Papo de Cinema, estes e outros temas foram abordados para responder à questão: em que estado anda a crítica de cinema?

Em termos de vertentes históricas da crítica de cinema, existem, por exemplo, desde os longos artigos ao estilo do “Cahiérs du Cinéma”, onde muitas vezes as interpretações são mais “criativas” do que literais, a um modelo de dar “conselhos” ao público (“aqueles que gostam de… vão gostar de…”) típico da crítica norte-americana. Como vê a evolução histórica da crítica de cinema e como você se posiciona em termos de abordagem dos filmes?

Os primeiros escritos sobre o cinema eram muito mais noticias de valor, eram textos que falavam do filme, mas também da sala de cinema, da projeção, das orquestras no tempo do cinema mudo. Era uma noticia de valor.

Depois da 2ª Guerra Mundial, há uma profusão de vertentes surgindo e eu acho muito interessante porque, como em qualquer área, a critica de cinema também precisa de heterogeneidade – especialmente porque cinema está muito aberta a outras áreas do conhecimento – a antropologia, a filosofia, a psicanálise. É fundamental que seja vasta e heterogênea.

Depois existem estas tendências que você apontou na pergunta. Historicamente, também tem nos EUA essas abordagens de maior fôlego, ao que passo que na França há uma crítica menos ensaística.

Eu escrevo para um “site” e tenho que pensar para que publico escrevo, mas eu me posiciono no sentido de que a critica de cinema nunca deve deixar de discutir linguagem e gramática. Por mais que seja escapista que seja um filme, ele tem sempre que ser visto com seriedade, pois é feito com base numa gramática e tem seu resultado por conta dos elementos que utiliza.

Parece óbvio colocar isso, mas é verdade que muitos críticos da atualidade ficam comentando o assunto, o tema, quando na verdade tentar determinar a grandiosidade ou a mediocridade dos filmes é a MANEIRA como esses temas são abordados. Por isso é muito importante perceber o filme num conjunto amplo que reúne forma e conteúdo, discurso e ideologia.

No mundo atual há muita crítica repleta de chavões. O “som é muito imersivo, a fotografia é muito bonita”, mas não se discute o porquê. Tem muitas identificações e pouquíssimas interpretações – especialmente elementos de ordem gramatical. É por aí que tento situar aquilo que escrevo.

O que você acha da existência e da influência de coisas como um “agregador de críticas” e o que você achou do recente escândalo dentro dos Rotten Tomatoes, onde descobriu-se que uma agência pode pagar críticos mais desconhecidos para fazer aumentar as avaliações?

Eu acho que, de modo geral, eles prestam um desserviço na relação da critica com o publico. Primeiro por criar uma falsa ideia de que é possível reduzir a critica de um filme a uma percentagem. Os filmes são muito mais complexos do que isso. É uma simplificação grosseira acreditar numa percentagem.

Além disto, essa legitimação viria de um “corpo critico” que teria autoridade para falar – mas esta não é representativa do todo da critica e, sim, de uma parcela muito pequena. Nesta linha, há uma despersonalização, são poucos a ver quais os veículos que expressam certas opiniões. Para a maioria o consumo imediato da percentagem já é o suficiente. É muito problemático um agregador ter tanta proeminência. É muito difícil, senão impossível, dialogar como uma percentagem despersonalizada.

A crítica e associações anglo-saxãs parecem obcecadas pelas questões identitárias e de representação. Acha que isso implica num certo “policiamento” no cinema – vindo, supostamente, de forças progressivas da sociedade?

Não acho que haja obsessão. Certos discursos ganharam muita força, como a das minorias –  felizmente. O tema tem protagonizando alguns dos principais debates sociais e, como o cinema dialoga com o tempo onde é feito, é inevitável que represente estas preocupações.

No Brasil temos filmes sobre e protagonizados por povos indígenas ou por pessoas “trans” porque existe esse anseio de uma parcela da população mais progressista que estas minorias marginalizadas ganhem uma visibilidade que até então não tinham. É natural que tenhamos mais filmes atentos a isso e mais críticos orientando o seu olhar também por estas questões. 

Dito isso temos que evitar a miopia de achar que filmes que não tocam nestes assuntos estão deslocados do seu tempo ou não são validos. E aí lembro de um dos grandes do cinema brasileiro, Walter Hugo Khouri, que nos anos 60 não rezava pela cartilha do Cinema Novo, não fazia um cinema sobre luta de classes, mas que se voltava para classe média alta ou rica, e nos 60 e 70 e teve menos valorização do que o povo do Cinema Novo justamente porque parecia descolado da sua época. não estava tocando em questões consideradas urgentes.

Acho importante que expressem questões identitárias e que a critica tenha um olhar para isso, só que também é muito importante que a critica não se afaste de que tudo que diverge – até porque um filme que tenha uma mensagem positiva e dê voz a povos invisíveis não é, necessariamente, bom. Por vezes temos filmes muito bem-intencionados, mas cuja feitura compromete o resultado. 

Nesta mesma linha, existem conceções correntes de que o cinema, obrigatoriamente, tem um caráter de compromisso moral obrigatório com a sociedade. Ele deve servir à sociedade através da representação “correta” de determinados tipos sociais. Concorda que isso seja algo abrangente na crítica atual? Se sim, que consequências isso pode ter para a liberdade da criação artística?

Essa é uma questão bastante complexa. É muito difícil falar de uma “entidade” chamada A Critica. Ela é heterogénea, vasta, vem de diferentes formações culturais. A Internet possibilita multiplicidade de vozes. Dentro desta heterogeneidade há críticos que vão orientar o seu olhar para personagens que sejam moralmente ilibados, que deem bons exemplos.

O cinema não tem que carregar esse fardo. A arte não é feita para educar, para dar exemplos positivos, é feita para provocar. É evidente que tem que existir espaços para personagens não bons que não excluam a possibilidade de eu me identificar com ela em alguns aspetos. Esse é algo que vem perdendo espaço na crítica de cinema por conta da simplificação. Atualmente se tem disseminado textos que dizem que os filmes ‘ou são maravilhosos ou uma porcaria’. Existe um mundo entre um polo e outro.

Certamente isso tem consequência para a liberdade artística. Os criadores e produtores estão muito mais preocupados em não serem cancelados, em fazer alguma coisa que seja bem-recebida, com consequências muito nefastas para a criação.

Danny Glover, em entrevista sobre a série “Atlanta”, falou sobre o comportamento transfóbico de uma personagem a qual nos afeiçoamos, mas que tem um comportamento condenável. Glover fala do contexto socioeconómico dele, que foi criado dentro do machismo. Vai muito além de continuar gostando ou não do personagem. O medo de arriscar tem feito com que criadores histórias “bundonas”, que não tem coragem de criar histórias ousadas. A ideia de criar exemplos morais empobrece demais o cinema, torna-o maniqueísta, com os ‘bonzinhos e mauzinhos’, perde a força como arte de provocação.