Oscars 2024: “Zona de Interesse”
Por André Gonçalves
Em 1961, a cobrir o julgamento de Adolph Eichmann, oficial nazi responsável pelo transporte de milhões de humanos – judeus e não só, convém sempre reforçar – Hannah Arendt aplicou um termo que viria a definir a sociologia da segunda metade do século: a “banalidade do mal”. A ideia veio ao descobrir que o condenado se mostrava um mero burocrata, “nem perverso nem sádico”, mas “assustadoramente normal”. No fundo, mais do que um ser amoral, ele cumpria meramente as ordens que lhes chegavam de cima, sem gerar sobre elas um pensamento crítico (e moral) pessoal.
No mesmo ano e pegando exatamente no mesmo sujeito, Stanley Milgram decide aplicar o conceito de obediência cega à prática colocando cobaias sob uma figura autoritária a mandar dar choques a um elemento de controle (i.e. parte da equipa de investigação). Milgram descobriu, com a sua experiência, que o que se passou no Holocausto é mais fácil de acontecer de novo.
Estamos todos afinal a cumprir ordens no nosso dia-a-dia: as do chefe direto, as do CEO da empresa no trabalho, as das forças de segurança no cumprimento da lei nacional… E quando o extermínio de outros seres humanos se torna um trabalho como qualquer outro? Quando o não cumprir a ordem pode pôr até em causa a própria vida do “cumpridor” (como se testemunhou na Segunda Guerra Mundial)?
Jonathan Glazer deixou germinar esta sua adaptação livre de “A Zona de Interesse” (de Martin Amis) por praticamente uma década, abandonando a ficcionalização das personagens desse livro e nomeando claramente uma família alemã real no seu lugar – a de Rudolf Höss, comandante de Auschwitz. Ele teve um poder particularmente nefasto ao poder estar numa posição de execução de ordens que fizeram com que cerca de 3 milhões de prisioneiros tivessem perdido a vida, quase todos de uma forma imediata na câmara de gás – outros simplesmente por fracas condições na sua condição de escravos no campo de trabalho. Tudo segundo a sua própria confissão no julgamento de Nuremberga.
Ao longo de praticamente quase todo o filme, o que vemos é o dia-a-dia extremamente banal desta família, que construiu um espaço que está mesmo ao lado do campo de concentração mais famoso pelos piores motivos. Uma ida ao lago, a distribuição de roupa que chega por um carrinho de mão que todos sabem qual a origem e no entanto é tratado como se tivesse sido fruto de uma encomenda, o cultivo de hortícolas no jardim, uma festa na piscina, a recepção de uma visita especial, uma discussão marital sobre mudanças de local de emprego e o impacto que isso terá no futuro familiar. Se há exaustão num primeiro visionamento, ela parece também de si programada.
Enquanto isso, o argumentista e realizador recusa mostrar visualmente uma única vez o que está do outro lado – o mais próximo está numa rapariga polaca que distribui maçãs pelo caminho para os prisioneiros e que aparenta ser empregada da família, filmada com câmara especial de todas as restantes cenas dando um efeito de fotografia em negativo. O que vê é quase sempre o que se ouve, e é das utilizações mais macabras e eficazes do som desde que há cinema sonoro, apetece dizer…
Para a família, a sensação é de estarmos num tempo presente a assistir a um “Big Brother Nazi” – a expressão é do próprio Glazer, tal é o efeito de ter espalhado até uma dezena de câmaras estrategicamente dentro do espaço para que o movimento fosse o mais estático possível e permitisse assim maior fluidez para que os elementos da ação de ocorrerem num único plano.
E por falar em ação, ou melhor, inação sobretudo se formos alunos da escola Hollywood, dada a falta de uma narrativa tradicional que pegue no espectador de um ponto A para um ponto B, tendo para tal um arco de redenção (não há cá um Schindler, um alemão bom que se arrepende de não ter salvo mais pessoas, ou uma judia que tenha de escolher que filho salvar, etc.) – no fundo indo contra 99.9% das narrativas dos últimos 80 anos sobre o tema, Glazer fez questão de apontar que quis ter uma reflexão diferente que permitisse ao espectador ter a consciência de estar num tempo presente.
Há um salto quantitativo que devolve precisamente esse espelho ao espectador e oferece até múltiplas interpretações: a começar, claro, pela preservação da memória histórica através da existência de museus, sendo esta a interpretação mais literal; mas há também uma perversidade latente em incluir pessoal de limpeza a cumprir meramente ordens, a aspirar um museu temático. Como se a apatia que este trabalho manual e extremamente banal que está desligado do contexto para os agentes (podia ser um museu ou um bar de alterne para aquelas senhoras, sejamos sinceros) mimique também outra forma de apatia contemporànea, sobre um novo genocídio a acontecer, no conforto das redes sociais, no fundo um novo muro virtual construído.
Ainda não o assisti ( e vou assisti-lo) mas lembra em alguma com O Menino do Pijama Listrado, o fato da proximidade do campo dos prisioneiros com a residência da família em foco.
Assisti o filme, sem mostrar abertamente as atrocidades dentro do campo de concentração, passa todo o horror dos trágicos acontecimentos no mais violento lugar onde judeus foram dizimados em nome da supremacia ariana.