Oscars 2024: “Barbie”
Por André Gonçalves
“I’m every woman, it’s all in me”, já cantava Chaka Khan, como símbolo de emancipação feminina, umas boas décadas antes desta primeira chegada da primeira adaptação “ao mundo real” de “Barbie”, talvez a boneca de plástico mais famosa da humanidade.
Uma mulher plastificada para crianças, lançada pela primeira vez em 1959, ela foi se desdobrando em múltiplas personalidades (profissões), dando chama então a um feminismo liberal independente de “você consegue ser o que quiser” que começava a desenhar trajetórias em todos os territórios da cultura “pop”, incluindo o tema delicioso de Chaka mencionado acima. Poderíamos até questionar se a própria cultura Barbie não terá dado origem ao culto da estrela “pop” que foi ganhando poder ao patriarcado para pelo menos jogar pelas suas regras históricas, de Madonna a Beyoncé.
Como podemos alguma vez conciliar um passado problemático que a própria imagem capitalista e segregadora da Barbie (mesmo quando tentou inclusividade, há sempre uma e uma só imagem que as pessoas têm na cabeça: magreza como padrão, etc. ) trouxe desde a sua criação com uma nova vaga feminista? A tarefa seria sempre espinhosa, convenhamos.
Greta Gerwig, querida do cinema “indie” de Hollywood, que já tinha feito sucesso com “Lady Bird”, e com uma enésima adaptação de “Mulherzinhas” (ambos nomeados ao Oscar de Melhor Filme, e antevemos desde já que “Barbie” seja um dos próximos nomeados), foi chamada à Warner Bros. para cumprir esta tarefa. Juntamente com o seu parceiro de vida e de trabalho Noah Baumbach, decidiram injetar então num objeto a ser consumido por centenas de milhões uma crítica ao consumismo feroz, dando “uma no cravo e outra na ferradura”.
Após uma “piscadela” a 2001 de Stanley Kubrick, com a Barbie a servir de monólito dos tempos pós-bomba atómica, a narração de Helen Mirren, por vezes demasiado intrusiva, foca-se em descrever o “mundo de Barbie”, tão cor-de-rosa que depressa correram notícias de que a cor se tinha esgotado no nosso mundo. Acontece que a boneca, na sua versão estereotipada (interpretada por uma incrivelmente dedicada Margot Robbie, naquela que pode muito bem ser a performance que marcará toda a carreira), começa a ter problemas muito nossos conhecidos: pés “aplanados” – ao contrário dos pés prontos para o salto alto das bonecas – celulite e questões sobre a morte. Sim, a nossa boneca envelheceu e precisa então de se dirigir a quem brincou com ela para se “consertar”.
E é nesta odisseia, desta feita a piscar o olho a tudo o que nos aconteceu desde que a expressão “pós-moderna” foi inventada, onde a própria Mattel aparece e é retratada de uma forma suficientemente crítica, que a dupla Gerwig -Baumbach cria aqui um tratado sobre o feminismo – não como matriarcado mas sim na versão clássica e fofinha de igualdade de géneros. Para ajudar à tese, claro que não poderia faltar Ken, interpretado na sua versão estereotipada por um incandescente Ryan Gosling.
Ao mesmo tempo e de uma forma estranhamente existencialista para o produto em questão, há aqui um questionamento constante sobre como uma ideia é de facto dos elementos mais poderosos. As ideias vivem para sempre, nós não. Uma boneca de plástico será sempre uma ideia maior do que as nossas existências: capaz de traumatizar e confortar em igual medida.
Para irritação especial dos cínicos anticapitalistas e do público mais machista, “Barbie” é um filme sempre divertido e agradável de se ver, mesmo quando anda nestes questionamentos filosóficos e políticos de fazer revirar aqui e ali o olho dada a sua exposição mediática. Num dos momentos mais “reeltásticos” – i.e. facilmente repartilhável pelas redes sociais, a personagem corporativa depressiva interpretada por America Ferrera faz um monólogo desesperado que, apesar de parecer simplista visto isoladamente na maneira como foi escrito, no contexto de uma plateia acaba por transpor a barreira entre tela e espectador – muito pela maneira como a atriz se entrega e percebe ser este o seu grande momento de transmitir também algo de muito pessoal.
Não podemos ser suficientemente ingénuos para acreditar que “Barbie” vai resolver todos os problemas do mundo, mas também não poderemos ser demasiado pessimistas e achar que a obra veio aqui como mais um sinal do apocalipse iminente. Sim, há uma agenda financeira para fazer da Mattel a nova Marvel. Mas o que temos aqui, para objeto de partida, é um filme surpreendentemente mais pertinente – cinematograficamente e socialmente – do que poderíamos ter imaginado quando soubemos da notícia de adaptação. A visão por vezes autocentrada de Gerwig no seu passado de referências, sempre repleta de boas intenções, e ultimamente comprometida a meio – entre a reverência à marca que lhe alimenta e a irreverência demasiado intermitente, não devia ser de si suficiente para alimentar demonizações ou beatificações. Mas aqui estamos, numa era de redes sociais extremadas e “Barbie” ser apenas suficiente (“Kenough”) não cola. É o que temos.