Oscar 2023: “Elvis”, Mefistófeles e os estragos do “rock’n’roll”

Oscar 2023: “Elvis”, Mefistófeles e os estragos do “rock’n’roll”

Fevereiro 18, 2023 0 Por Roni Nunes
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Quem diria que o encontro entre o estilo barroco de Baz Luhrmann e a euforia radical da criação e zênite do “rock’n’roll” faria faíscas e transformaria a hipótese de uma aborrecida “biopic” de “arcos narrativos” em momentos de uma brutalidade sumptuosa e visceral. 

Neste sentido, a artificialidade e o recurso a simbolismos estilizados por parte de Luhrmann para ilustrar acontecimentos conhecidos da vida de Elvis (Austin Butler) produzem momentos admiráveis – e nenhuma delas é mais estupenda do que a sequência que apresenta o jovem menino que um dia seria destinado à grandeza.

Neste mundo de “faz-de-conta” do cineasta australiano, duas tendas praticamente fora de tempo e bizarramente organizadas no espaço resumem as duas grandes dimensões da história da música negra que vai inspirar o “rock’n’roll”.

Na tenda que representa as “juke joints” se exercita o profano – onde o cantor Gary Clarke Jr, estranhamente fora da banda sonora oficial do filme, sintetiza a loucura do “blues” com o seu “medley” de “That’s all right, Mamma” , canção de Billy Boy Crudup que será o primeiro sucesso de Elvis, e a estupenda “Black Snake Moan”, clássico de Blind Lemon Jefferson que trazia uma metáfora nada sutil para o ato sexual. Do outro lado, o sacro tem outros objetivos, mas é igualmente intenso, frenético e de uma religiosidade onde não se prega (no deserto), mas se sente. O menino Elvis sente: ele tem o dom.

Estragos irremediáveis: o “rock’n’roll”

Começa aí também a justeza com a qual Luhrmann não cede aos moralismos deste triste século XXI para transmitir uma verdade inquestionável: Elvis Presley amava a música negra. E não só: a paixão era extensiva aos seus músicos e manifesta na forma como burlava a horrenda segregação social da época para perambular por Beale Street – a mítica rua de Memphis que entraria para o panteão da música popular.

Assim, Elvis não simbolizou apenas o amálgama entre a música negra e o “country” que seria o “rock’n’roll”, mas o fenómeno massivo no qual se transformou (se só foi possível pelo facto de ser branco foi em função do “apartheid”) revolucionaria os costumes das sociedades ocidentais.

O sensacional período de explosão do “rock’n’roll”, entre 1955 e 1957 seria, assim que possível, domesticado e anos mais tarde substituídos por “The Twist” e Frankies Avalons e Anicettes Funicellos como simulacros de “música jovem”. Mas, aí, o estrago já era irremediável: a cultura de juventude irrompeu de uma forma que levaria muito mais tempo a domesticar – talvez só nos 80s com a tríade demoníaca Ronald Reagan-Margareth Thatcher-HIV. 

A acreditar em Luhrmann, o próprio Elvis compreendeu tudo, quando diz que o “mandaram para a tropa para o silenciar”. Facto é que, após voltar da Alemanha, onde esteve destacado durante dois anos no final dos 50, já quase não foi para gravar “rock’n’roll”, mas virar ídolo (e vítima, fisicamente falando) da máquina infanto-juvenil “hollywoodiana”.

Mefistófeles

Outro acerto da abordagem de Luhrmann foi lançar mais luz sobre o misterioso cel. Parker (Tom Hanks) – o narrador da história. Independente do grau de vilania que se lhe atribua, concede um realismo palpável ao mundo artístico: quando diz que, sem ele, não existiria Elvis, está a dizer apenas a verdade. Mais à frente, quando tenta resumir a derrocada do seu pupilo naquele que é o ponto mais fraco, superficial e desnecessário do filme, também não mente: Elvis, mais do que em barbitúricos, era um adicto das audiências.  

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