“Nope”, o novo filme de Jordan Peele: um cineasta que veio para ficar
Por André Gonçalves
E, ao terceiro filme, surge talvez a derradeira confirmação que Jordan Peele está cá para ficar na história como digno descendente de uma herança clássica de fazer cinema de espectáculo. Nope (no Brasil lançado com o título Não! Não Olhe!) usa no seu enredo um par de irmãos treinadores de cavalos descendentes do cavaleiro responsável pelo primeiro filme em 1878 por Eadweard Muybridge, que era nada mais que uma sucessão de 24 fotografias em rápido movimento.
Este trivia aparentemente acessório à trama, acaba afinal por traçar um ponto histórico em que o olhar humano foi finalmente capturado em movimento para ser visto por um público, logo percursor de todos os métodos de captura de visão em movimento que temos atualmente à disposição (cinema, televisão, câmaras de vigilância – interessante como Nope vai a todos estes espaços de uma forma que não parece invasiva – até pode parecer desconexa num primeiro olhar).
É que, este duo de irmãos, ao deparar-se com a existência de um OVNI, decide… filmá-lo para ganhar mediatismo e uma fortuna, e com isto perpetuar no fundo o lado mais problemático da nossa civilização moderna, que chegou precisamente com a invenção e posterior massificação da câmara, e nos trouxe uma pré-concepção que filmar feitos nunca antes vistos nos tornam automaticamente estrelas.
É um falso filme fácil este Nope. Por detrás do “marketing” agressivo que o vendia como o “blockbuster” de Verão à moda do primeiro filme a ter esse nome (Tubarão, de 1975) pela distribuidora, que sabe que Peele é a esta altura um nome por si só capaz de trazer pessoas a uma sala de cinema (tanto Get Out como Us conseguiram mais de 255 milhões nas bilheteiras mundiais), há um objeto difícil de identificar, isto é, que se recusa a arrumar tudo num pacote que seja totalmente digerível para uma parte do público habituado a querer ter as prateleiras bem separadas.
Talvez por isso esteja a ter uma existência comercial ligeiramente mais problemática, com um boca-a-boca mais tóxico, entre pessoas que não sabem totalmente se foi uma experiência 100% positiva no final. É uma série B pretensiosa (no bom sentido) que evoca um eixo do passado que podemos definir como Spielberg/Cronenberg/Shyamalan, que aqui e ali vai também buscar um ou outro susto fácil, é certo, mas que aposta sobretudo numa primeira fase na sugestão e em pressupostos que mais adiante são meras “partidas” ou falsos indícios (o louva-a-deus, o chimpanzé, toda a sequência do estábulo…).
Mas mesmo em supostas divagações do que está ali na narrativa central, apercebemo-nos, com o filme a rodar em retrospetiva nas nossas mentes, o quão efetivamente importantes estas cenas aparentemente desconexas são para a mensagem que acredito que seja aqui a principal a transmitir por Peele: nós, humanos, temos ganho a vida a explorar os outros animais (e claro, minorias humanas), e a querer forçar o nosso olhar – direto ou via câmara – sobre eles, no mundo do espectáculo mais do que nunca em expansão graças às redes sociais, e a cada um de nós ter uma câmara, nem que seja a do “smartphone”… até a um ponto em que há claramente uma rotura e a violência (contra-)predatória vem ao de cima, em nome de uma defesa. Parece familiar para a nossa própria espécie animal, certo? Pois.
Que haja esta mistura de cultura de sobrevigilância, fama instantânea graças a um mediatismo capaz de se tornar influência se arriscarmos a filmar o “impossível”, com mensagens de ativismo animal e civil, sem as fundações da obra irem abaixo, é de si um triunfo impressionante. Mas Peele consegue em mais de duas horas manter sempre o espectáculo engatado também com o público com o mínimo de “span” de atenção restante, usando para isso uns truques de género, mas sem nunca esquecer o humor proveniente do tom satírico e auto-consciente que pretende imprimir, e de onde deriva o próprio título do filme.
E claro, ao dirigir aqui um naipe diverso de atores não-brancos à cabeça – conforme vem sendo a sua regra para forçar inclusão, mesmo no cinema de género, onde permanecem uma minoria que teima em ser alvo para morrer. E isto tudo pela primeira vez operando independentemente sem a interferência direta de Jason Blum, mentor dos dois filmes anteriores. Embora a sua mentoria permaneça aqui presente em espírito, Peele terá tido aqui uma independência suficiente ao ponto de poder completar aqui a sua visão com menor interferência externa.
Nope não será a pedra no charco da novidade que foi Get Out, mas mostra efetivamente uma completude, talvez a maior da sua carreira até ao momento, para que o futuro, longe destes “hypes” instantâneos em massa onde o “marketing” é o filme, lhe possa dar até mais valor que o presente.