Nightmare Alley: mentirosos, manipuladores, falsários.
Cultura XXI inicia uma série de postagens relacionadas aos Oscars, cuja cerimónia de premiação realiza-se a 27 de março. Depois de outros artigos disponíveis aqui, desta vez é a luxuosa produção de Guillermo del Toro (br O Beco do Pesadelo, pt O Beco das Almas Perdidas), que concorre a quatro estatuetas – incluindo Melhor Filme.
O “noir” foi o grande reinado da ambiguidade e, consequentemente, do realismo. Encarrilhar uma panóplia de personagens de moral duvidosa (no mínimo…) no ambiente dos velhos circos que atravessavam as terrinhas norte-americanas e que evocavam, por si só, uma imagen de decadência, parecia uma grande ideia. E foi: o escritor William Lindsay Gresham consagrou-se com ela no seu livro da 1945 – preenchendo o “beco do pesadelo” do título retratando o sombrio submundo do negócio circense. Apenas dois anos depois, na grande era do “noir”, uma bela versão com Tyronne Power veio dar à costa.
Guillermo del Toro, por sua vez, que anda com melhores ou piores resultados a reviver o passado já há alguns anos (a emulação de Creature of Black Lagoon em Shape of Water, os castelos do terror gótico em Crimson Peak, os “kaiju films” em Pacific Rim), desta vez envolveu-se nas múltiplas teias do enredo de Gresham para revisitar um dos mais belos subgéneros do Studio System.
O homem enforcado
“Nascido sob um mau signo”, como dizia um clássico do “blues”, Stanton Carlisle, que beneficia de uma performance-bravura de Bradley Cooper, começa o filme a mandar um cadáver para a cave e a meter fogo na casa. Uma vez andarilho, vai dar ao referido circo – o local por excelência das mentiras. Entre os especialistas na matéria estão a “vidente” Zeena (Toni Collete) e o inescrupuloso Clem (William Dafoe), o gestor do empreendimento. Acaba por arrastar dali para a procura da glória a doce Molly (Rooney Mara) – das poucas figurinhas decentes por aqueles lados.
Se a moral (ou a falta dela) é o centro da história, este é mais um dos milhares de contos de ambição desmedida – cuja sina é marcada pela carta do tarot “o homem enforcado”. Esta é uma herança da primeira adaptação que, aparentemente, mantém a infidelidade relativa ao significado da carta para os conhecedores – onde ela significa sabedoria.
Independente disto, dá para imaginar onde isso vai dar – só resta saber como vai acontecer. E o que del Toro apresenta se parece com um longo (demasiado longo) “travelling” em tons pastel para um narrativa cheia de curvas e contracurvas que emocionalmente surgem sempre no mesmo registo. História de mentirosos, falsários, manipuladores, Nightmare Alley movimenta-se como um jogo de espelhos – mas prejudicado em intensidade pelo apetite do cineasta em querer inventariar o máximo de possibilidades.
Entre o homem, o álcool e a besta
De todo o submundo criado por Greesham a figura mais interessante era o “geek”, simbolicamente o último reduto de humanidade. “Humano ou besta – ou um fronteira entre ambos”, perguntava o “showman”. Vivendo como um animal, trata-se de um homem que é chamado diante do público chocado para arrancar cabeças de galinha com os dentes. Num dado momento, Clem explica ao ambicioso Stan como se forma um “geek”: “não é fácil e toma tempo”, diz ele. A prática consiste em arrecadar das ruas alcóolicos irremediáveis, aproveitando-se do vício para reduzi-los à mais visível forma de degradação.
O extremo oposto do “geek” é a psicanalista Lilith (Cate Blanchett), uma requintada “femme fatal” que termina por subir a fasquia a um ponto intolerável para Stan. A psicanálise estava em alta nos 40: leituras psicológicas, manipulação, baixos instintos – um cardápio de temas sugestivos que no papel devem ter feito del Toro salivar.
Nightmare Alley é produção com dinheiro para tudo do bom e do melhor (os cenários e a fotografia devem ter ajudado a entorpecer os sentidos da crítica “yankee”, em geral simpática ao resultado), com um elenco de luxo e um realizador de topo. Chegou para os Oscars, embora dificilmente será um filme a ficar na memória.
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