“Não se livram de mim tão facilmente”: um “punk” para o século XXI
Dia 6 de janeiro viu o lançamento de “Every Loser”, o 19º álbum de Iggy Pop. Cultura XXI dedicou-se a investigar o que foi feito dele ao longo do século XXI…
Certa vez, já nos longínquos 80s, Iggy Pop concedia por telefone uma entrevista a um jornalista brasileiro. Num dado momento admitiu que gostaria de experimentar viver no Brasil, mas depois retrocedeu: “eles (os “yankees”) não se livram de mim tão facilmente!”
Muitos anos passaram, as rebeldias diluíram-se num oceano de produção e consumo e as utopias nas “sociedades líquidas”, conforme observava o filósofo Zygmunt Baumann, são possíveis apenas numa escala individual – ou seja, indivíduos a percorrerem as suas próprias utopias numa sociedade globalmente ruim porque destituídas de sonhos coletivos.
E o que Iggy Pop tem a ver com tudo isso? Tudo – ou seja, como o homem que dava o próprio corpo (literalmente) ao manifesto (“os cacos de vidro” e outras histórias) adapta-se à uma época estranha àquela outra que ajudou, de alguma forma, a moldar? Fazendo música, essencialmente. Foi o que lhe restou.
Qual música?
Em jeito de síntese, Pop passou as últimas décadas entre tentativas de conexão com tendências contemporâneas, momentos de revivalismo onde competia deslealmente contra a sua herança (como poderia o que quer que fizesse bater os primeiros Stooges e o início da sua carreira solo?) e outros onde afastava-se totalmente daquilo que o identificava como “ícone” (nãããão….!) do que quer que fosse – do “rock’n’roll” em particular.
2001 BEAT EM´UP
Iggy Pop iniciou a década com uma nova banda, os Trolls – que tinha como principal membro criativo o guitarrista Whitey Kirst e músicos com os quais ele já excursionava desde os anos 1990. Junto ao irmão deste, Alex, na bateria, Pete Marshall na guitarra e o ex-baixista dos Body Count, Mooseman, Iggy Pop entra no novo século com um álbum de “rock’n’roll bastante sólido, embora não tenha convencido muita gente.
A questão é que o avô do “punk” tentava entrar na modernidade acompanhando uma das grandes tendências da altura… nada menos que o “nu metal”! Assim, não se dava apenas o caso de “metal” e “punk” nunca terem sido amigos de “noitadas”, mas exemplos de Iggy Pop ir buscar até o “crossover” “rap/metal” na faixa-título é chocante (e delicioso ao mesmo tempo).
Preconceitos à parte, foi um álbum de potente “rock’n’roll”, mesmo que estranho ao mundo de Pop, como o “metal” de “L.O.S.T.” “Howl” ou “Weasels”. Já “Drink new Blood” é uma ode vampiresca que espelha o espírito da coisa – onde os berros imploram por sangue novo. Assim, lembrar Linkin Park, Disturbed e até Marylin Manson (“Football”), com quem ele aparece numa fotografia em 2023, não era propriamente um crime.
Mooseman viria a morrer de uma bala perdida num tiroteio num “drive in” dois meses antes do lançamento do álbum – dedicado à sua memória.
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2003 SKULL RING
Dois anos depois os Trolls fizeram as suas últimas aparições num álbum – surgindo em sete das 17 canções de “Skull Ring”. E quem retornou foram ninguém menos do que os velhos Stooges – os irmãos Asheton. Eles abrem o álbum e entram em mais três músicas. Como seria uma constante na travessia do Iguana pelo novo século, fica a meio caminho de convencer – num álbum marcado pelas marcas diversas deixadas pelos convidados: se em “Beat em’Up ficava-se pela referência, aqui Pop resolveu trazer artistas em carne e osso para o estúdio.
Assim, há luminares de um “punk rock” mais adocicado (Green Day, mais interessante em “Private Hell”, que vai além do “punk de três notas” da típica “Supermarket”) a “enfant terrible” de pleno direito Peaches (também duas participações) e Sum 41 – estes naquele que foi, de longe, o maior “hit” do álbum e um dos maiores de Iggy Pop no novo século – “Little Know it All”.
2007 THE WEIRDNESS – com os STOOGES
“Já se sabe como são os álbuns de “reuniões” funcionam: ouve-se pelo tocar, não pelas canções – que são, na melhor das hipóteses, medíocres”.
O comentário da Rolling Stone de certo ilustra o bombardeio que essa reunião de Iggy Pop com os irmãos Asheton, depois de 33 anos, suscitou – ainda que o New Music Express, feroz detrator das incursões solo do cantor pelo novo século, sugeriram uma outra abordagem: “…raramente chega perto de alcançar a ferocidade mágica dos ‘vintage’ (…) mas eles são os Stooges – e isso devia bastar”.
Na verdade é difícil perceber o que muita gente queria ao comparar um álbum de 2007 com os três que celebrizaram os Stooges – começando com o homónimo de 1969, mais “Fun House”, de 1970, e “Raw Power”, de 1973.
Até porque o contexto de urgência estava totalmente perdido ou, como disse o cantor anos na mesma entrevista referida no início, que definia a sua música como “um tapa na cara do ‘flower power’ do qual tanto me orgulho”. No século XXI já ninguém põe flores na cabeça e na vastidão do ruído circundante, como “significar” algo revolucionário? Mas, claro, isso não anula o facto de que talvez as audições não justifiquem muito porque os primeiros álbuns existem.
Bem sucedida ou não (ou até “útil ou não”) essa tentativa de lançar originais serviu para “tours” que os levaram um pouco por todo lado – para muitos uma raríssima hipótese de os ver ao vivo depois de décadas de separação.
2009 PRÈLIMINAIRES
Se inovação é a palavra de ordem no negócio, Iggy Pop conseguiu a façanha de alcançar um dos seus mais interessantes álbuns no século quando chuta o “rock´n´roll” para um canto e vai buscar inspiração nos recônditos mais longínquos do universo musical. Assim, aparecem“chansons” (cantadas em francês!), antiquíssimos “standards” do “jazz” e até bossa nova (uma versão em inglês do clássico de Tom Jobim “Insensatez”).
O resultado foi tal que até se poderia dizer que em vez de fazer “rock” requentado ou tentativas inconsequentes de modernização, Pop encontrou longe do “rock” (ou não tão longe assim, como em “Nice to Be Dead”) alguns dos seus melhores momentos. A sua voz, grave, de facto, prestou-se a todo o tipo de registo que pretendeu fazer.
Tudo começou com Michel Houellebecq, o mais icónico dos escritores franceses contemporâneos e aquilo que poderia ser uma canção para a adaptação do livro A Possibilidade uma Ilha feita pelo próprio (um filme que passou por Sitges mas, de forma geral, não cruzou as fronteiras francesas e foi mal recebido por lá).
2012 APRÈS
Depois dos acentos francófonos de três anos antes Iggy Pop pode ter ficado entusiasmado o suficiente para continuar, mas não a Virgin Corporation, que recusou-se a lançar o álbum por achar que nenhum fã do cantor de “rock” ia querer saber destas andanças.
A megacorporação podia ter os seus receios justificados – já que o homem meteu-se por nada menos que as mais vulgarizadas músicas da história da música francesa (“Et si tu n’existais pas” e “La Vie en Rose”) e, quando migra para o inglês, aventura-se por caminhos temerários, como “Everybody’s Talkin” (clássico “pop” celebrizado por Harry Nilsson), Cole Porter e até mesmo “Michelle”, dos Beatles, em versão com direito a “backing” feminino. Trabalho de “crooner”, enfim – do qual deve se ter cansado, no entanto: um ano depois estaria “pronto para morrer” com os Stooges.
2013 READY TO DIE – com os STOOGES
Apesar das injúrias de 2007 seria Pop a decidir quando os Stooges estavam, finalmente, “prontos para morrer” – nesta surpreendente ressurreição a qual Ron Asheton, morto de ataque cardíaco em 2009, não viveu para testemunhar. Quem voltou foi James Williamson, ausente desde “Raw Power”, para ocupar o posto de guitarrista.
De resto é uma banda na descontração do “it’s only rock’n’roll” (“Burn”, “Gun”, “Dirty Deal”, “Ready to Die”, com direito a solos de guitarra…) embalando niilismo impiedoso: “Se eu tivesse uma arma eu atiraria em todo mundo”, em “Gun”, “Estou dando tiros para o alto porque estou pronto para morrer”, de “Ready to Die”).
Isso enquanto a capa exibe o templário Pop armadilhado e pronto para explodir. Ou, como disse a propósito de “Préliminaires”, “depois dos 60 todos os dias são preliminares para a morte”. Para Scott Asheton, também vítima de ataque cardíaco, ela chegou mesmo um ano depois. Fim de história, cai o pano para os Stooges.
2016 POST POP DEPRESSION
Três anos depois de Iggy Pop fazer as pazes com os críticos, ele aparece redirecionando a busca de inspiração, desta vez, para os anos com Bowie – sendo de certa forma surpreendente como ele não tenha pensado nisto antes.
Claro que comparações com “The Idiot” ou “Lust for Life” não são, de todo, recomendadas, mas entre a réplica espiritual da “bowieana” “Sound and Vision” (“Gardenia”, o “single” do álbum) e as referências diretas àqueles tempos com “German Days”, houve espaço para especulações diversas – como a acústica e soturna “Vulture”, o embalo de piano com “backing vocals” de “Chocolate Drops” ou a sardónica “America Valhalla”, conduzida com um baixo no limite da saturação.
A jogada não incluía só isso, mas também sangue novíssimo e do mais criativo: dois dos Queens of Stone Age (Josh Homme e Dean Fertita) e o baterista dos Artic Monkeys (Matt Helders). No final, houve tempo tanto para obter o aplauso especializado como para reconciliar-se com os “charts” (pelo menos na escala de Iggy Pop) e arranjar combustível para novas digressões.
2018 TEATIME DUB ENCOUNTERS (EP em parceria com os Underworld)
Precisamente a meio da “tour” do álbum anterior Iggy Pop é encarcerado num hotel para onde os membros dos Underworld montaram uma espécie de estúdio portátil para uma parceria a três. O resultado poderia ter ido parar à última versão de Trainspotting, o clássico que nos anos 90 havia reunido na sua banda sonora precisamente o trio – com “Lust for Life” de Iggy e a icónica “Born Slippy” do grupo eletrónico.
“Os realizadores são grandes portadores de más notícias”, brincaria um dos Underworld quando Pop foi informado pelo próprio Danny Boyle de que as músicas não entrariam no filme. Não importa: para registo, ficam um dos mais surpreendentes movimentos do cantor nos últimos anos – beneficiando da sólida tapeçaria viajante para introduzir letras entre o irónico, o nostálgico (a longa história de “Bells & Circles”, baseado num episódio real onde Pop snifou cocaína no avião e pediu o número de telefone da hospedeira… apenas para verificar no hotel, exasperado, que o tinha perdido!) e até um meio-termo entre elas – em “I’ll See you Big”, talvez o mais próximo que Iggy Pop já chegou de um resultado poético (ou, pelo menos, antes de “Free”) – confessando ter sempre desejado fazer amigos e o quanto foi sempre difícil não só arranja-los como mantê-los.
2019 FREE
Não se tratasse de Iggy Pop e pareceria lógico que uma longa e dramática trajetória terminasse num álbum com uma capa com tons azulados onde se vê uma sombra à beira da praia. O interior é a condizer: em vez de parcerias “rock” trata-se da guitarrista Sarah Lipstate, cujo projeto Noveller transita na “ambient music” e do trompetista Leron Thomas – um homem do “jazz”.
Iggy Pop começa recitando a letra de “Free”; mais para frente ele será encontrado a declamar Dylan Thomas (uma das instituições poéticas americanas em seu “Do not Go Gentle”) e Lou Reed – esta um grande petardo publicado postumamente em 2018. “We Are the People”, como o próprio sinalizou, explica bem a sua visão da América nos dias que correm e tem versos como:
“We are the people / Who conceive our destruction and carry it out lawfully / We are the insects of someone else’s thought / A casualty of daytime, nighttime, space, and God / Without race, nationality, or religion”.
Lá pelo meio tem a singularíssima “James Bond”, que até ganhou “videoclip” (se bem que bastante minimalista), onde apenas um baixo acompanha Pop a cantar não sem ironia (“nunca me diverti tanto a cantar uma letra”, disse ele) a história de uma misteriosa mulher que é convite à ação e à aventura – pois ela quer ser a “sua James Bond…” . Uma nova idade requer uma nova música. Será?
2023 EVERY LOSER
Quando parecia que Iggy Pop tinha entrado numa zona de sossego a declamar poesias sobre os arpejos minimalistas da “ambient music” eis que “Frenzy”, a alucinada faixa de abertura deste “Every Loser”, torna a virar tudo de cabeça para baixo.
E se nunca faltaram fãs mais novos para dar um “little help” ao seu velho mestre, desta vez quem aporta por aqui é Duff McKagan e um incrível naipe de músicos vindos dos Red Hot Chili Peppers, dos Foo Fighters, dos Jane’s Addiction e dos Pearl Jam – um verdadeiro “who’s who” do “rock” dos 90s.
“Neo Punk”, dedicada a conhecida aversão de Iggy Pop por todo o tipo de “hipsterismo” segue “Frenzy” na pancadaria, mas há outros voos – especialmente bem-sucedidos em “Strung out Johnny” e, curiosamente, em “Comments”, que traz na bateria o finado Taylor Hawkins (Foo Fighters) num registo que não ficaria estranho num álbum dos Simple Minds.
Com 75 anos, Iggy Pop não parece “pronto para morrer” – fica-se à espera da sua nova cartada…