“Não Olhem para Cima”: o apocalipse segundo as redes sociais
Cultura XXI inicia uma série de postagens relacionadas aos Oscars, cuja cerimónia de premiação realiza-se a 27 de março. Depois de A Pior Pessoa do Mundo, e West Side Story, agora é a vez de Não Olhem para Cima, nomeado a quatro estatuetas – incluindo Melhor Filme.
O mundo do século XXI tem empurrado as narrativas de ficção para um caminho de cinismo, de desilusão, em direção a sucessivas distopias (até a aventura infanto-juvenil da Marvel, Avengers: Infinity War (bra: Vingadores: Guerra Infinita; pt: Vingadores: Guerra do Infinito), apresentava a ideia de uma gestão sanitária do excesso de população) e de um sentido de apocalipse. À pesada dieta de desgraças seguida à risca pelos noticiários foi acresentada a ruidosa e acelerada futilidade das redes sociais – com toda sua quantidade de informações desinformadas. Sobressai a aparência de caos, de decadência, de confusão.
Sossego
Um copo de café é uma boa forma de começar essa história. Ele sugere pausa, descanso, relaxamento. O objeto pertence à uma investigadora (Jennifer Lawrence) de um pacato centro astrónomico do Michigan. Por aqui tudo é silencioso, mesmo quando ela fica entusiasamada com a descoberta de um cometa – ou, pelo menos, até o seu chefe (Leonardo DiCaprio) descobrir através de cálculos que o tal corpo celeste ruma, com consequências catastróficas, em direção à Terra!
Com nove quilómetros de diâmetro, será suficiente para extinguir a vida no planeta dali a seis meses. O que estes pacíficos cientistas não sabem é que, muito antes do cometa, eles serão devorados por um outro tipo de apocalipse – a velocidade, a superabundância e a suprema frivolidade do mundo dos “media” (e da política por eles condicionada) no século XXI.
O que é um “bronteroc”…?
O argumento do realizador Adam McKay, todo contactenado aos mínimos pormenores (contém antecipações preciosas, como a previsão da morte da presidente, vivida por Meryl Steep, por “bronteroc”…!), funciona bem no sentido de transformar Não Olhem para Cima numa narrativa que sintetiza um aspeto de uma era – lembrando filmes como Colisão (o de 2006, sobre a solidão e a falta de calor humano nas sociedades modernas) ou Birdman (os rumos do cinema na era dos super-heróis).
A violenta dieta dos noticiários
A problemática da comunicação é antiga e já ocupou os estudiosos dos “media” ao longo do século XX. Tudo gira em torno de como captar a atenção e uma vez conquistada, mantê-la o máximo de tempo. É assim que sempre operam os noticiários: captar a atenção com o extraordinário – o qual, contrapõe-se, obviamente, à rotineira existência que a maioria das pessoas leva.
As consequências sociais são consideráveis: uma vez que as audiências consomem, em geral de forma pouco crítica, uma dieta pesada em termos de violência e um sem-número de desgraças, acabam por ser submetidas a um sentimento permanente de medo e desconfiança. Um cenário no qual as redes sociais apenas vieram a agravar.
A política como um circo cómico
A política é carta fora do baralho: Meryl Streep dá vida à uma presidente dos Estados Unidos fútil, autocentrada e com a óbvia preocupação de manter a sua imagem junto do eleitorado ao custo de qualquer expediente. Não há nenhuma reverência à “senhora presidente” ou aos centros de poder: a abordagem é cínica, desencantada e transformada, por diversas vezes, num circo cómico.
A ressaca do capitalismo tecnológico
Peça fundamental é o megacapitalista composto de forma deliciosa por Mark Rylance. Confessadamente inspirada em Elon Musk, trafega na grande ressaca da selvajeria do capitalismo tecnológico que propõe uma “salvação” repleta de lucros e dividendos para a sua empresa – um “doador platina” à campanha da presidente e que, por isso, exerce sobre ela uma considerável influência.
Mas a crença arrojada na tecnologia não garante, infelizmente, todas as soluções. Num diálogo, a cientista vivida por Lawrence diz a um jovem adepto de “teorias da conspiração” que eles (os grandes capitalistas) “não são tão espertos quanto pensam” – e isso, especialmente no filme, é um problema.
Diversos tópicos divisam-se aqui e ali na sua aparência de mosaico – os abusos do politicamente correto, a questão ecológica, a associação entre a extrema-direita e os “antigos valores” (o comandante da missão de discurso “trumpista” vivido por Ron Perlman), e as guerras de (des)informação – onde lutam pela atenção das audiências os grupos que acham que “não se deve olhar para cima” contra os que acreditam no seu contrário.
Uma oração pela família
Não Olhem para Cima termina por pecar pelo sentimentalismo que envolve toda a família do cientista e os seus amigos no final, com direito até à uma oração…! A ideia é operar uma mostra de simplicidade, centralizada no afeto, na amizade e numa vida organizada em torno do núcleo familiar (a escolha do cientista em detrimento da franco-atiradora sexual vivida por Cate Blanchett). A vida da pequena “comunidade” em contraposição à brutalidade frívola das altas esferas.