“May December”, na Netflix: o “perigoso” novo filme de Todd Haynes

“May December”, na Netflix: o “perigoso” novo filme de Todd Haynes

Dezembro 8, 2023 0 Por admin
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Por André Gonçalves

Insecure people are very dangerous, aren’t they?”

São precisos apenas alguns segundos de filme para nos apercebermos que Todd Haynes está de volta a um universo feminino que o fez famoso – e produziu os melhores filmes da sua carreira, diga-se de passagem (“Seguro”, “Longe do Paraíso”, “Carol”). As notas musicais são fruto de uma readaptação de uma partitura de Michel Legrand para o filme “The Go-Between”, de Joseph Losey (1971), enquanto observamos um “lettering” de créditos espampanante (algures entre Almodóvar e o sensacionalismo de um título de jornal) e uma cena de borboletas a vaguear por folhas –  animal que ganhará o seu próprio protagonismo visual ao longo desta película, em todo o seu ciclo de transformação, do cativeiro até à libertação.

A história aqui é remotamente baseada em factos veridicos: a de Mary Kay Letourneau, a professora que teve relações sexuais com um dos seus alunos de 12 anos e, posteriormente, engravidou e casou com ele, tendo sido fascínio dos tablóides sensacionalistas na década de 90 do século passado. 

Haynes decide, claro, modificar algum historial deste caso e injectar uma componente “meta”, ao introduzir uma atriz – Elizabeth Berry – que não olha a meios para atingir uma certa perfeição realista nos seus papéis (Natalie Portman) e que se começa a intrometer cada vez mais na vida deste casal fruto de um romance proibido – criminoso, neste caso, até – formado por Gracie e Joe (Julianne Moore e Charles Melton, respetivamente). O objetivo seria aparentemente simples: tentar perceber a “psique” complexa desta mulher criminosa aos olhos da sociedade, e que hoje prossegue a sua vida com uma aparente leveza, como se todo o passado tivesse efetivamente valido a pena. Mas remexer no passado, através de perguntas ao casal e ao rol de conhecidos e família, gera inevitáveis tensões.

Sob uma aparente comédia negra desbocada, Haynes desde cedo nos prende numa gaiola voyeurista, onde os jogos de espelhos imperam entre a atriz que pretende encarnar a mulher e esta. As imperfeições do granularizado da fotografia de Christopher Blauvelt mimicam perfeitamente uma narrativa sem saídas fáceis e sem vítima, herói e vilão bem definidos. 

Este filme é em si um “masterclass” em estética e como esta cria sentidos narrativos – tudo parece jogar de uma maneira, que aqui e ali quase que arrisca perder um certo ritmo “hollywoodesco” para perseguir um caminho pessoal imprevisível onde a comédia e o melodrama se misturam e se confundem por vezes numa só cena, consoante a sensibilidade do próprio espectador. Para um filme norte-americano é de si já impressionante esta ambiguidade e amoralidade, mas “May December” transcende geografias e preconceitos clássicos para ser um objeto ímpar neste início de década.

Claro que para traduzir tanta densidade estética e narrativa e cativar um público que já tinha conquistado muito tempo antes deste filme ter sido produzido, Haynes precisou de rodear-se da nata de Hollywood (Natalie Portman e Julianne Moore, fabulosas) e de um diamante em bruto (a revelação de Charles Melton, no papel do adolescente que se tornou pai sem se ter formado por completo). 

Os seus elementos podem ser inseguros, e logo perigosos, mas o autor parece gozar de uma nova liberdade e segurança no controlo da sua obra. Ironia das ironias, a Netflix, tão conhecida por produzir reconstituições audiovisuais de crimes reais, comprou este filme tão ultimamente cáustico para com o “exploitation” pueril aquando da sua passagem por Cannes. A vida é conflituosamente bela, não é?