“May December”, na Netflix: o “perigoso” novo filme de Todd Haynes
Por André Gonçalves
“Insecure people are very dangerous, aren’t they?”
São precisos apenas alguns segundos de filme para nos apercebermos que Todd Haynes está de volta a um universo feminino que o fez famoso – e produziu os melhores filmes da sua carreira, diga-se de passagem (“Seguro”, “Longe do Paraíso”, “Carol”). As notas musicais são fruto de uma readaptação de uma partitura de Michel Legrand para o filme “The Go-Between”, de Joseph Losey (1971), enquanto observamos um “lettering” de créditos espampanante (algures entre Almodóvar e o sensacionalismo de um título de jornal) e uma cena de borboletas a vaguear por folhas – animal que ganhará o seu próprio protagonismo visual ao longo desta película, em todo o seu ciclo de transformação, do cativeiro até à libertação.
A história aqui é remotamente baseada em factos veridicos: a de Mary Kay Letourneau, a professora que teve relações sexuais com um dos seus alunos de 12 anos e, posteriormente, engravidou e casou com ele, tendo sido fascínio dos tablóides sensacionalistas na década de 90 do século passado.
Haynes decide, claro, modificar algum historial deste caso e injectar uma componente “meta”, ao introduzir uma atriz – Elizabeth Berry – que não olha a meios para atingir uma certa perfeição realista nos seus papéis (Natalie Portman) e que se começa a intrometer cada vez mais na vida deste casal fruto de um romance proibido – criminoso, neste caso, até – formado por Gracie e Joe (Julianne Moore e Charles Melton, respetivamente). O objetivo seria aparentemente simples: tentar perceber a “psique” complexa desta mulher criminosa aos olhos da sociedade, e que hoje prossegue a sua vida com uma aparente leveza, como se todo o passado tivesse efetivamente valido a pena. Mas remexer no passado, através de perguntas ao casal e ao rol de conhecidos e família, gera inevitáveis tensões.
Sob uma aparente comédia negra desbocada, Haynes desde cedo nos prende numa gaiola voyeurista, onde os jogos de espelhos imperam entre a atriz que pretende encarnar a mulher e esta. As imperfeições do granularizado da fotografia de Christopher Blauvelt mimicam perfeitamente uma narrativa sem saídas fáceis e sem vítima, herói e vilão bem definidos.
Este filme é em si um “masterclass” em estética e como esta cria sentidos narrativos – tudo parece jogar de uma maneira, que aqui e ali quase que arrisca perder um certo ritmo “hollywoodesco” para perseguir um caminho pessoal imprevisível onde a comédia e o melodrama se misturam e se confundem por vezes numa só cena, consoante a sensibilidade do próprio espectador. Para um filme norte-americano é de si já impressionante esta ambiguidade e amoralidade, mas “May December” transcende geografias e preconceitos clássicos para ser um objeto ímpar neste início de década.
Claro que para traduzir tanta densidade estética e narrativa e cativar um público que já tinha conquistado muito tempo antes deste filme ter sido produzido, Haynes precisou de rodear-se da nata de Hollywood (Natalie Portman e Julianne Moore, fabulosas) e de um diamante em bruto (a revelação de Charles Melton, no papel do adolescente que se tornou pai sem se ter formado por completo).
Os seus elementos podem ser inseguros, e logo perigosos, mas o autor parece gozar de uma nova liberdade e segurança no controlo da sua obra. Ironia das ironias, a Netflix, tão conhecida por produzir reconstituições audiovisuais de crimes reais, comprou este filme tão ultimamente cáustico para com o “exploitation” pueril aquando da sua passagem por Cannes. A vida é conflituosamente bela, não é?