
Índios, LGBTs, pistoleiros: um Brasil violento retratado no Porto/Post/Doc
O festival decorre no Porto até 30 de novembro. A seleção de longas brasileiros, presentes na seção Cinema Falado, fala de algumas das mazelas e de diferentes tipos de violência presentes na sociedade brasileira. Elas existem desde há muito, mas encontram especial abrigo no seio do governo atual.
O Porto/Post/Doc escolheu filmes que terminam, invariavelmente, com créditos finais esclarecedores do pressuposto social/histórico/realista que abrangem – o que ocorre mesmo no único de ficção, Madalena.
MADALENA, Madiano Marchetti (foto de abertura)
Apesar da inevitável “causa social”, o grande ganho do realizador foi procurar fazer cinema antes de proselitismo – até porque é o único dos três filmes que não é um documentário. Assim, as pequenas historietas do quotidiano surgem apenas tocadas pelo “motivo” principal (a trans assassinada) e, quando se relacionam com esta, é pela forma apática com que lidam com o desaparecimento da “personagem”-título.
A partir deste vazio fantasmagórico, o filme respira num retrato cirúrgico de um Mato Grosso do Sul marcado pelo agronegócio – onde vastas plantações de soja, drones e máquinas agrícolas convivem de alguma forma com os destinos dos protagonistas de três “histórias”, as suas festas noturnas, as suas projeções para o futuro e o culminar num piquenique entre amigas à beira do rio.
Sem uma particular relação de causa-e-efeito e sem que as personagens tenham ligações umas com as outras, o filme alcança a sua maior força nos registos naturalistas das interpretações, dos diálogos e das situações. É de esperar o que Madiano Marchetti proporá num próximo projeto – esperando-se que não afunde nos clichés de “arthouse” e no cinema de “causas” – armadilhas às quais aqui escapa pela tangente.

A ÚLTIMA FLORESTA, Luiz Bolognesi
Já Luiz Bolognesi não pretendeu mais do que mostrar a vida dos Yanomamis – uma das mais importantes tribos indígenas ainda existentes na Amazónia. E, claro, cada vez mais ameaçadas não só pela invasão dos garimpeiros e do seu mercúrio que envenena os rios, quanto do próprio processo de aculturamento que leva os mais jovens a querer emigrar a para as cidades dos “brancos”.
Talvez por isso tem especial interesse a reconstituição da mitologia indígena (o surgimento do mundo, do bem, do mal, representados cinematograficamente) e uma impressionante sessão xamánica movida a plantas alucinógenas. A Berlinale, que adora índios, assegurou mais uma participação de filmes brasileiros devotados ao tema – vindo o cineasta a ser agraciado com um prémio da audiência. Entre histórias e evocações pontuadas pelos sons da floresta, só no final adivinha-se alguma melancolia condizente com o título do filme.

EDNA, Eryk Rocha
Mais abstrato é o retrato de Edna Rodrigues de Sousa – conforme proposto por Eryk Rocha em Edna. Entre canções quase de ninar, contrastando com tiros, imagens a preto-e-branco, “travelings” velozes pela paisagem desfocada, o filme vai reconstruindo a vida atual e as memórias da protagonista – entre pobreza, sofrimento, lembrança da tortura e da prisão durante a ditadura, perda de entes queridos. Um Brasil onde se adivinha, no curso do rio Araguaia que começa no Pará e depois divide Tocantins e Mato Grosso, a ganância dos fazendeiros, a miséria dos camponeses e a ação dos pistoleiros contra quem se insurgir à uma ordem estabelecida feudal.
Inspirada pela Guerrilha do Araguaia, Edna também fez parte da Guerra dos Perdidos, outra tentativa de desestabilizar o governo militar nos anos 70 que teve um triste fim. Talvez pela importância do tema, é de lamentar que Eryk Rocha exagere nos requintes estilísticos e nos largos silêncios, deixando para os créditos finais alguma explicação mais concreta, mas totalmente insuficiente sobre uma personagem que merecia vir à tona de facto como um retrato das injustiças no Brasil profundo – históricas e atuais.