IndieLisboa, “Summer of Soul”: não houve revolução, mas boa música nos finais de semana

IndieLisboa, “Summer of Soul”: não houve revolução, mas boa música nos finais de semana

Agosto 22, 2021 0 Por Roni Nunes
Partilhar

Quando o produtor televisivo Ted Tulchin tentou vender as imagens do Harlem Cultural Festival, que tomou conta do bairro durante seis finais de semana ao longo do verão de 1969, não conseguiu encontrar compradores. Apesar de jornalistas terem comparecido ao local para os seus telejornais, Woodstock, que aconteceu não muito longe dali, ficou com todas as atenções. Graças ao poderio da indústria cultural “yankee”, absorveu em todo o mundo ocidental o imaginário daqueles que sonhavam por uma época melhor.

A tentativa de vendê-lo como “black Woodstock” tampouco ajudou – demonstrando que, para além da ideia implícita no filme, de que o silenciamento foi político (por que interessaria a um país segregacionista promover tal acontecimento?), o aspeto económico foi também relevante. E de classe social: ainda hoje a periferia, independente da cor do seus habitantes, só interessa aos telejornais enquanto material para sensacionalismo.

Sly & The Family Stone, um dos momentos altos da série de concertos

Em Summer of Soul (Or the Revolution Could not Be Televised), a Searchlight, com Ahmir “Questlove” Thompson no comando, reedita as imagens do evento – que ficaram na penumbra durante 50 anos. O festival aconteceu graças aos esforços de relações públicas do empreendedor Tony Lawrence, ao apoio do prefeito de Nova Iorque, John Lyndsay, popular no Harlem e a concorrer à reeleição e à marca de café Maxwell, que queria associar a sua imagem com a África.

E por lá passaram músicos enormes: Sly & The Family Stone, Nina Simone, B.B. King, Stevie Wonder e muitos, muitos outros. O público estimado nos seis finais de semana foi de 300 mil pessoas. Thompson entrou no projeto depois que a Searchlight adquiriu os direitos das imagens – encontradas na Dinamarca por um arquivista em 2003 e depois de mais um tortuoso périplo no qual até o reformado Tulchin tomou parte.

B.B. King

Não houve revolução para ser televisionada

Não houve nenhuma “revolução” no Harlem – ideia mais conveniente ao olhar contemporâneo de Thompson para reforçar um “statement”. Não que os participantes fossem destituídos de consciência social – o que de resto seria impossível numa altura efervescente onde as estruturas do “apartheid” “yankee” eram sacudidas: quando jornalistas no local perguntavam a alguns presentes sobre o que acharam da chegada do homem à Lua, ocorrida na mesma altura, o que ouviam eram coisas como “não queremos saber do homem na Lua. Podiam ter gasto todo esse dinheiro investindo em melhorias no bairro”. Mas a falta de impacte posterior do festival ao contrário, por exemplo, da morte de Martim Luther King, demonstra que não perseverou na memória de quem lá esteve como uma bandeira.

No palco, no entanto, imperava o chamado para a revolução. Músicos e pregadores, dos quais os mais incisivos foram Nina Simone (foto da abertura) e Jesse Jackson, tinham bastante consciência do bom momento para cobrar um posicionamento de combate por parte do público presente. O evento também serviu para entoar o que James Brown cristalizara um ano antes no clássico “Say It Loud – I’m Black and I’m Proud”. Frases como “os negros são bonitos”, frequentemente reiteradas,  demonstram a aguda consciência dos artistas do modelo cultural que os excluía de um padrão de beleza e lhes negava a autoestima. O primeiro terço, monopolizado por pastores e música gospel, acentua um cariz religioso e radicalmente diferente do hedonismo laico e sensual de Woodstock.

Multiculturalismo a sério

Nem todos aderem ao preto-no-branco do discurso incendiário – cuja insistência numa relação conflituosa entre negros e brancos é mantida hoje através das redes sociais: Sly & The Family Stone, sempre à frente, produziu dos melhores momentos musicais ao mesmo tempo que consagrava uma visão “avant-garde” e indiferente a tons de pele que marcam uma verdadeira expressão de multiculturalismo. Assim, o músico apareceu com um saxofonista (Jerry Martini) e, escândalo, um baterista (Gregg Ericco) brancos; já a trompetista (Cynthia Robinson) era uma mulher.

Stevie Wonder

Igualmente de relevo é a participação (e as lembranças dos remanescentes) do grupo 5th Dimension – que buscava um lugar entre o “seu povo” por não serem considerados “suficientemente negros”. Eles ficaram célebres à uma escala global pelo “medley” “Aquarius” / “Let the Sunshine In” – composições extraídas de um dos momentos mais icónicos da era “hippie”, o musical Hair – igualmente notável por incluir um elenco multirracial.

O subtítulo de “Summer of Soul” não é totalmente enganoso: num longo percurso de 50 anos ocorreu, de facto, uma revolução – na medida em que um país marcado por um odioso sistema discriminatório de “apartheid” hoje sofre um violento “backlash” imposto, principalmente, através das redes sociais e que implica que várias das suas instituições públicas (que vão dos telejornais a Hollywood) vivam em permanente estado de retração.