IndieLisboa 2022, os filmes: “Arrebato”
Arrebato aprecia-se melhor não como um filme, mas como uma experiencia, com todos as suas implicações. E essa experiencia é, sobretudo, visceralidade, um mergulho sem amarras num mundo próprio, ditado pelas regras da arte enquanto total liberdade e inconsequência. Algo talvez possivel ou, pelo menos, potencializado, pelo uso das mais violenta das drogas , a heroina.
Não há um enredo, mas antes a relação entre dois “cineastas”, um que se supõe inserido no mercado e sem o menor gosto pelo que faz (Eusebio Poncela) e outro (Will More) atirado à fluidez da sua propria loucura, filmando cenas caseiras horas a fio e entregando as imagens à uma montagem delirante. Este segundo realizador acredita que só o outro é capaz de entendê-lo e para isso envia-lhe a sua última obra.
Não admira que a própria equipa de produção andasse as voltas com o uso da heroína, a qual acabaria por fazer capitular o seu realizador, Ivan Zulueta, e que ditaria o seu desaparecimento ao longo de quase todos os anos 80. Claro que num filme sobre o caos intempestivo que relacionava ele próprio com um vincado desmazelo, nem produtor nem distribuição teriam grandes espectativas depois do resultado final de um projeto que, ainda assim, conseguiu algumas exibições em 1980 e a circulação em festivais. Mas, claro, o destino previsível só poderia o de se transformar num filme de culto – e numa das mais insólitas reflexões sobre o cinema, aqui associado à uma adição e aos percalços febris e desconjuntados que esta pressupõe.
Essa procura do êxtase (arrebato) surge como pendurarada num tempo e no espaço próprios, alheia a demandas variadas e que vive intensamente dos bons anos 70 – de liberdade total e oportunidades bizarras. Arrebato é como um fluxo da consciência, não uma agradável, mas tortuosa, labiríntica, cheia de sofrimento e pontuada pela adição e as suas abstinências. De especial interesse é a edição sonora, que joga com sons eletrónicos, sirenes e música para criar um efeito claustrofóbico.
Segunda e última longa-metragem de Zulueta, a cuja longa de 1969 (Un, Dos, Tres, Al Escondite Inglés), um musical que troçava da Eurovisão, acresceram-se uma série de curtas-metragens. Nos anos 80, apenas mais duas, para seriados de TV. Destino igualmente errático teve o carismático Will More – ao contrário de Poncela e Cecília Roth, que aqui faz de sua namorada e serão donos de bem estabelecidas carreiras a partir dos anos 80.