“Holy Spider: filme sobre ‘serial killer’ iraniano que chocou Cannes tem estreia no Brasil e em Portugal

“Holy Spider: filme sobre ‘serial killer’ iraniano que chocou Cannes tem estreia no Brasil e em Portugal

Fevereiro 8, 2023 0 Por Roni Nunes
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Filme estreia nas salas de cinema em Portugal e Brasil dia 16 de fevereiro.

No ano 2000 um veterano do conflito Irão-Iraque, aparentemente lamentoso de não ter sido feito mártir na guerra, teve uma iluminação divina: “limpar” as ruas da cidade onde viva da “corrupção e do pecado”. Assim, Saeed Hanaei decidiu iniciar uma série de estrangulamentos de prostitutas que grassavam em lugares pobres de Mashhad – a segunda maior cidade do Irão (3 milhões de habitantes) e, para piorar, um dos maiores locais de peregrinação religiosa do mundo. Durante um ano Hanaei desempenhou a sua missão “inspirada por Deus” com regularidade – assassinando logo no primeiro mês (agosto de 2000) três vítimas. Abril e julho de 2021 foram particularmente ativos: nove homicídios. Exatamente um ano depois da sua cruzada individual, Hanaei cometeria o seu último delito antes de ser apanhado pelas autoridades.

A história causou grande impacto mediático no país e, já na época, o cineasta Maziar Bahari apresentou And Along Came a Spider, um documentário onde tratava do “serial killer”, das suas vítimas e de um dos aspetos mais notórios do caso: o facto do assassino gozar de relativo apoio popular – ganhando a empatia de grupos de pessoas que concordavam com a sua noção de “limpeza”.

Em 2020, outro projeto sobre o tema, Killer Spider, ficcionava o acontecido – dois anos antes de Ali Abassi, que emigrou em 2022 para a Suécia e vive atualmente na Dinamarca, pegou na história para um filme de ficção. Filmado na Jordânia (obviamente o governo atual não alinharia em tais efemérides…) o registo é bastante mais convencional que os trabalhos anteriores de Abassi (os brutais Shelley e Border) e arrancou na Seleção Oficial de Cannes para uma sólida carreira no circuito internacional.

Na abordagem, o cineasta tem na mão a história real (ainda que com várias licenças) da jornalista Arezoo Rahimi (vivida pela atriz Zar Amir Ebrahimi, premiada na Croisette), que lhe serve perfeitamente para comentar a óbvia problemática das mulheres no Irão. Vinda de Teerão para Mashhad, ela desafia a ordem reinante – ou seja, o parco interesse das autoridades religiosas e policiais em investigar o desaparecimento das prostitutas.

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Numa outra vertente, Abassi entrega logo quem é o assassino: não é um filme de investigação, mas antes uma forma de compreensão deste pacato cidadão, bom pai de família e trabalhador que, nas horas vagas, circulava pelas ruelas pobres de Mashhad à procura das suas vítimas – as quais levava para a sua casa em horários escolhidos de forma que a sua família estivesse ausente. Depois de preso, Hanaei acaba por virar celebridade, gozar de apelo popular e alcançar o apoio de alguns movimentos de bastidores no sentido de tentar absolvê-lo. O desfecho de toda essa história só virá na última cena.

O filme não é um tratado social, embora Abassi foque as suas lentes no óbvio machismo predominante na sociedade iraniana ao mesmo tempo que tenta esboçar uma perspetiva humanista ao dar rosto a algumas das vítimas. A obra não aborda, no entanto, um outro aspeto que talvez explique melhor o movimento das mulheres que desencadearam as enormes manifestações (e violentas reações do governo) que se viram em 2022: os ventos de mudança que, lentamente, irrompem e pressionam o conservadorismo fóssil dos poderes cristalizados na tóxica mistura entre política e religião.