“Hit Man” (“Assassino Profissional”): projeto comprado pela Netflix estreia antes nas salas
Por André Gonçalves
Quem somos?
Esta é a derradeira questão existencial do ser humano consciente. A teoria psicoanalítica popularizada por Freud destaca três agentes: id, ego e superego. Id é o desejo latente, Superego representa a responsabilidade; cabendo ao ego mediar então estes dois pesos contraditórios.
Inspirado parcialmente na história verídica de Gary Johnson, professor universitário que decide trabalhar para a polícia em “part time” e aí meio que por acidente, se converte num agente infiltrado, vendendo a ideia de ser um assassino profissional para assim caçar os “homicidas por procuração” por aí existentes, Richard Linklater, num argumento co-escrito com o seu ator Glen Powell, assina aqui um quadro cómico perante o lado mais perturbado e menos responsável do ser humano. Pelo meio aproveita também para aprofundar como a tal mediação do “eu” se torna muito moldada pelo “outro” – sobretudo quando o Amor, esse grande, entra na equação.
Será que a identidade se pode alterar? Johnson vai acreditando que sim, a cada sucessiva caça de procuradores de assassinos e novo disfarce. Num destes encontros conhece Maddy Masters, e aí as complicações começam, ao deixá-la escapar para as autoridades e em simultâneo ao querê-la para ele. É que Maddy possui um marido alegadamente abusador, do qual se quis livrar, e que vai ser peça chave para a narrativa se desmoronar numa coordenação de peças de dominó e numa simetria irresistível com o que tínhamos na mesa.
Ocupando quase sempre um espaço secundário ou partilhado com vários atores na grande tela, Powell (“Top Gun: Maverick”) finalmente consegue uma oportunidade para brilhar no centro da ação, num gesto de circulo completo com o cineasta que o revelou pela primeira vez com “Everybody Wants Some!!”. E é um brilho surpreendente para quem apenas o encarasse como um “homem bonito”. Há aqui um desafio físico claro, nos tais disfarces, mas é também a conseguir captar um timing cómico certeiro – entre situações que variam entre o burlesco e o dantesco passando pelo romântico, que consegue mais do que respeitar o material co-escrito pelo próprio; torna-o memorável, e um verdadeiro momento “assim nasce uma estrela”. Não fossem os Oscar tão aversos a comédias, e tínhamos aqui um claro e justíssimo nomeado a Melhor Ator. Mas ainda é possível sonhar, até porque a Academia está em transformação, e a Netflix, que comprou os direitos do filme por 20 milhões de dólares após os grandes estúdios estarem alegadamente assustados, poderá querer fazer campanha.
Fazendo par com Powell está a latina Adria Arjona, outra revelação que cumpre também num papel igualmente complexo e de mais do que uma faceta. De facto se há algo que une a filmografia de Linklater é a boa direção de atores, e aqui não é excepção, com um elenco composto por semi-desconhecidos, de onde se destacam Austin Amelio (“The Walking Dead”), Retta (“Parks and Recreation”), e Sanjay Rao (“Bad Romance”), o trio de funcionários da polícia que se vão tornando um empecilho para o protagonista à descoberta de si mesmo.
Tendo passado por um período mais sério na sua carreira, culminando com a consagração de “Boyhood” (um filme mais divisivo do que possa parecer, aliás), é refrescante ver Linklater de volta a uma libertação identitária, desprezando resoluções académicas e politicamente corretas – até a história “parcialmente verídica” goza com essa expectativa. Talvez a Netflix tenha pensado que com esta onda de fascínio pelo “crime real”, tenha um “hit” fácil nas mãos, mas “Hit Man” não é tão fácil e bonito como o marketing possa aparentar, e ainda bem.