HISTÓRIA DO BRASIL, HÁ 50 ANOS: ENTRE O “MILAGRE” E OS “ANOS DE CHUMBO”

Julho 4, 2021 2 Por Roni Nunes
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O Brasil há 50 Anos: apesar da ditadura Chico Buarque lança “Construção”, um dos grandes álbuns de sempre

No início dos anos 70 o melhor e o pior conviviam no Brasil: o “milagre económico” empregava milhares de pessoas em vastas obras de infraestrutura, encobrindo consequências futuras do endividamento do país e da dependência do petróleo. De outro lado, os “anos de chumbo” designaram um período terrível de violência contra opositores da ditadura. Música, literatura e cinema legam grandes obras, enquanto no universo da televisão a Rede Globo torna-se o canal oficial do regime e elimina a concorrência.

O GOVERNO DE EMÍLIO GARRASTAZU MÉDICI

Em 1971 o governo do general Médici, que devia a sua ascenção à amizade com o general Costa e Silva e havia sido eleito por uma Junta Militar em 1969, avança para o seu terceiro ano. O período é lembrado por duas expressões com evocações bastante contraditórias: o “milagre brasileiro”, aludindo ao forte crescimento económico, e os “anos de chumbo” – referindo-se ao período mais violento da repressão ditatorial. Essa foi um tanto minimizada na época não só pela melhoria do nível de vida como pelos maciços investimentos em “marketing” de um governo cada vez mais profissionalizado na área.

Brasil há 50 anos: O “milagre económico” que escondia um brutal endividamento. A usina de Itaipu

No caso do primeiro item, uma política não particularmente nacionalista tornou o Brasil refém dos bancos (e do petróleo) internacionais. Estes forneceram as verbas para vastos investimentos em infraestrutura (Itaipú, a maior usina hidrelétrica do muno é o melhor exemplo), mas tornaram o país num dos maiores devedores internacionais. Sintomático ou não desta aliança, 1971 foi o ano no qual Médici visitou Richard Nixon.

“OS ANOS DE CHUMBO”: DESPARECIMENTOS, TORTURAS, ASSASSINATOS

A adminsitração Médici foi particularmente empenhada em acabar com a “subversão”. Tendo a censura com rédea solta, ancorada no AI-5, de 1968, aperfeiçou os métodos de ataque – com particular uso da tortura e de redes de informação. A partir daí enfileiraram-se desaparecimentos, torturas e excecuções.

Por estas alturas grupos de sonhadores tinham abandonado os livros e pego nas armas: só a destituição violenta do regime poderia originar uma sociedade melhor. Eram melhores as intenções do que as capacidades diante de uma máquina governamental cada vez mais eficiente e desproporcional.

Uma destas organizações era a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR): em 1971 tinham acabado de “devolver” o embaixador suíço Giovanni Bucher depois de um sequestro que rendeu a libertação de 70 presos políticos. O chefe da VPR era Carlos Lamarca. Liderando um grupo de guerrilha a partir do sul de São Paulo, andou com a cabeça a prémio durante dois anos até ser emboscado na Bahia. Foi executado e a imprensa rigorosamente proibida de qualquer divulgação para não criar mitos contrários ao interesse dos governantes.

Lamarca e o militante Zequinha assassinados

MÚSICA RESPLANDECENTE

Apesar da repressão, a música resplandece. Chico Buarque, o artista mais de perto observado pelos serviços de informação da ditadura, lança o seminal “Construção”. Para além de clássicos que espelhavam uma situação existencial (a faixa-título), o cantor endereçava várias mensagens sutis à ditadura – numa altura em que andou foragido por Itália.

Já Gal Costa lançava o segundo álbum duplo da história da MPB (“Fatal – Gal a todo Vapor”), onde imortalizava “Vapor Barato” e uma série de clássicos, enquanto Os Mutantes apresentavam o seu penúltimo álbum (“Jardim Elétrico”) com Rita Lee e Caetano Veloso lamentava o exílio em Londres no álbum homónimo de 1971 – onde aparecia a icónica “London London”.

Roberto Carlos não esqueceu dele na sua obra do mesmo ano – embora só muitos anos depois se tenha sabido que “Debaixo dos Caracóis dos seus Cabelos” era uma homenagem a Caetano. Do mesmo disco, aliás, vale ressaltar o funeral progressivo da sua via “rock” para consagrar-se como cantor romântico/católico a partir daí. Seu parceiro Erasmo Carlos também se distanciava da Jovem Guarda, mas para um “rock” mais amadurecido no seu “Carlos, Erasmo…”

Já Raul Seixas ensaiava à base de irreverência a sua segunda tentativa no mercado tomando parte na “Sociedade da Grande Ordem Kavenista”, obra recolhida das lojas pela própria companhia que o lançou por não gostar do resultado!

Tim Maia lançava o seu segundo álbum bem-sucedido um ano depois da estreia que igualmente lançava alguns dos seus clássicos. Enquanto ele pegava nos ritmos da música negra “yankee”, Jorge Ben Jor ficava-se por ritmos mais brasileiros mas tematicamente também na senda do reforço do “black power” com “Negro É Lindo”.

E, por fim, mas não menos importante, um pouco de tudo isso ressurge em “Ela”, o álbum de Elis Regina que merecia da produção de Nelson Motta um esforço para conectá-la com novos tempos.

CINEMA MARGINAL

O Cinema Novo passava à História e o batizado “cinema marginal” ia mais a fundo nas representações estéticas de temas críticos. Clássicos notáveis são deste ano: “A Casa Assassinada”, de Paulo César Saraceni, retratando uma família decadente de Minas Gerais baseado no livro de Lúcio Cardoso de 1958, Nelson Pereira dos Santos inspirando-se nos registos históricos de Hans Staden sobre antropofagia para o seu “Como Era o Gostoso o meu Francês” e Graciliano Ramos inspirando a história de uma ascensão social em “São Bernardo”, de Leon Hirschman.

Segundo certos olhares iniciava-se um período “decadente” no cinema popular – mais tarde batizado como “pornochanchada” por alguns críticos azedos. Visto retrospetivamente alguns dos seus filmes são bem mais interessantes do que parecem. Sem caber particularmente no rótulo, “O Enterro da Cafetina”, com Jece Valadão, foi um dos maiores sucessos do ano – bilheteiras que também receberam bem o último esforço de Roberto Carlos no cinema – “A 300 Quilómetros por Hora”.

Brasil, há 50 anos: o clássico do “cinema marginal” “A Casa Assassinada”

LITERATURA DE ALTO NÍVEL

Os temas da ditadura aparecem de forma explícita ou alegórica em alguns livros do período. “Bar Don Juan”, de António Callado, dos mais assumidos, já discutia a derrota dos movimentos da luta armada. O autor havia abordado o tema num dos seus livros mais famosos, “Quarup” (1968) e teve diversos problemas com o regime.

Érico Veríssimo, influenciado pelo realismo fantástico latino-americano, propõe uma abordagem mais alegórica no seu último romance, “Incidente em Antares” – onde voltava a tratar de temas comuns à sua carreira – entre os quais uma representação irónica do machismo violento que imperava na política no sul do Brasil.

Também falando de caciques, mas com variações geográficas, particularidades regionais e diversidade estilística é “Sargento Getúlio”, de João Ubaldo Ribeiro.

Num registo mais intimista pode-se destacar a antologia de pequenas narrativas de Clarice Lispector. “Felicidade Clandestina”.

TELEVISÃO: A ASCENSÃO DA REDE GLOBO

Desafetos do regime enfrentavam cada vez mais problemas (a Excelsior foi obrigada a fechar portas em 1969) e depois de uma fase curiosamente propícias a incêndios foi a Rede Globo a sair menos chamuscada da contenda. Especialmente a partir do final dos anos 60 experimenta uma ascensão meteórica enquanto vai se tornando progressivamente a porta-voz do regime.