História de Portugal: “Dom Roberto”, um marco do cinema lusitano

História de Portugal: “Dom Roberto”, um marco do cinema lusitano

Dezembro 26, 2021 0 Por Roni Nunes
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Dom Roberto foi lançado em 1962 e, durante o mês de dezembro, teve a sua versão restaurada exibida na Cinemateca Portuguesa. Para efeitos de produção o seu mentor, Ernesto de Sousa, conseguiu realizá-lo, com muitas dificuldades, através de uma estrutura cooperativa – uma espécie de “crowdfunding”. Os obstáculos, no entanto, garantiram-lhe uma liberdade narrativa acrescida por ter ser feito fora do circuito institucional da ditadura de Salazar.

Ao mesmo tempo, esteticamente fazia uma ponte com o neorealismo o qual, a despeito, de ter se desvanecido há cerca de dez anos, continuava uma fonte de influência sobre várias cinematografias locais.

O filme trazia um dos atores mais populares da época, Raul Solnado, a viver, mal, da sua arte de ventríloquo. Quando conhece Maria (Glicínia Quartin), vai viver com ela numa casa abandonada, que os dois tentam tornar habitável enquanto enfrentam a miséria de cada dia.

Nesta conversa com o crítico Hugo Gomes* foi possível abordar uma série de questões sobre um filme rico de interpretações – seja em função da sua relevância como cofundador do Cinema Novo português ao lado de Verdes Anos, seja pelas suas questões estéticas – que não deixam de envolver um parentesco com o cinema de Chaplin.

Para complementar, os problemas que Ernesto de Sousa enfrentou com o regime: foi preso quatro vezes – inclusive quando o seu filme ganhou um prémio no Festival de Cannes…

Em termos de produção, há várias questões interessantes envolvendo o filme. A mais célebre é que José Ernesto de Sousa conseguiu fazê-lo através de uma espécie de “crowdfunding” e uma ideia de “cooperativa de cinema” que vinha das teorias da revista Imagem. Qual o significado disto tudo no contexto de produção da época?

A revista “Imagem”, sob a direção de Baptista Rosa, foi composta por uma geração de críticos, cada um deles com um desejo profundo de fazer cinema (o seu cinema), um pouco à imagem da Cahiers, que como bem sabemos iria fecundar a Nova Vaga Francesa.

Como tal, era normal existir esse companheirismo, esse sangue na guelra para se aventurar fora das páginas e arriscarem de câmara na “mão”, colocando em prática essa ideia de cinema (deve-se salientar que a “Imagem” era oposta à popular revista “Plateia”, especializada em cinema popular e das grandes estrelas).

Não foi apenas Ernesto de Sousa a reivindicar neste círculo: nomes como Alberto Seixas Santos ou António-Pedro Vasconcelos também saíram desse ambiente de “cooperatividade”.

Quanto à necessidade deste processo demorado e dependente de “boas vontades” de produção, devo frisar uma particular sequência neste filme – a contagem de trocos pela personagem de João (interpretada por Raul Solnado) – “coisa simples” mas que vai contra a toda a imagem que o Estado tentava prolongar no cinema através de pressões várias.

Esta cena caracteriza-se pelo afastamento de uma representação ou reconstrução de uma pobreza habitável no nosso país, até porque o pobre no cinema português “deveria”, segundo os DDTs da época, serem mais do que sujeitos humildes – mas“pobres” felizes com as suas limitadas possibilidades. Logo, qualquer apropriação de um movimento tão politizado que é a austeridade estética do neorrealismo, seria reprovada pelos órgãos oficiais de financiamento estatal do cinema no país. 

Apesar de haver reminiscências de algum cinema anterior (o filme Saltimbancos, por exemplo), como situa esse interesse por personagens completamente à margem da sociedade portuguesa?

Manuel Guimarães, realizador o qual se tem tentado reavaliar ano após anos, e confesso, sempre de forma falhada, foi um dos primeiros importadores do movimento neorrealista em Portugal – isto no preciso momento em que o movimento é reconhecido internacionalmente.

Esta busca pelas personagens fora da falsa-cosmopolita de Lisboa do cinema “salazarento” ou do romantismo algo bucólico da província, é visto como um gesto crítico ao sistema em  voga e às políticas atuais que limitavam a óptica do país em prol de uma “fantasia lusitana”.

Não é preciso aprofundar quais políticas são essas, mas o que gerou dois territórios antípodas no mesmo Portugal, uma aprovada e passada pelos órgãos de comunicação e pela indústria cinematográfica da altura (muitas delas em forma de escapismo), outra, não-autorizada, que demonstrava um país de saltimbancos, obscurantismo, ignorância e um atraso descomunal social frente a outros países europeus.

O neorrealismo, por outro lado, vingou-se na literatura portuguesa [Manuel da Fonseca é um exemplo], muitas vezes servida para fomentar ideologias socialistas e comunistas – como bem sabemos, a alternativa para um regime autoritário e opressor. 

Parece óbvia a raiz neorrealista do filme, com muitos cenários exteriores, personagens do povo, drama social. Mas também há muito de Chaplin na história do casal que vai viver numa casa abandonada sem quaisquer condições, mas mantém o otimismo e a esperança…

Há mais de Chaplin no João de Raul Solnado, do que na cópia barata que obtivemos durante anos – Cardo – encarnada pelo Pratas. Em Dom Roberto, é deplorável o miserabilismo das personagens, muitas vezes branqueadas com um senso de ficcionalização do protagonista.

À sua boa maneira ou criatividade narrativa, encontra argumento desculpável, por exemplo, para um roubo de torneiras na sua não-casa, da mesma forma que Chaplin e o seu Charlot procuravam otimismo na sua miséria (e indo mais longe, os “paninhos quentes” de Roberto Benigni em A Vida é Bela, de forma a não assustar o seu filho no meio daquele campo de extermínio).

É uma negação necessária para contrariar um agravado estado de pobreza. Quanto ao neorrealismo, Chaplin, bem à sua maneira, serviu inconscientemente como um precursor desse movimento anos antes do próprio de ele surgir.

Muito se discute sobre o nascimento do neorrealismo, ora em Rossellini (Roma, Cidade Aberta), ora com Visconti (Obsessão), mas ninguém pode negar que houve no cinema de Chaplin um gesto politizado subjacente naquela vontade de mostrar o mundano, a realidade quase miserabilista fora do campo da fantasia escapista e por vezes burguesa.

Por outro lado, Chaplin havia demonstrado essa “pobreza”, dando corpo e silêncio a uma classe empobrecida, diversas vezes renegada ou somente caricaturada no cinema norte-americano da altura. Foi graças à sua capacidade tragicómica que nós, espectadores, sentimo-nos obrigados a sentir compaixão por esse vagabundo encenado.

Se pensarmos bem, e não querendo “apagar” emocionalmente todo o cinema por detrás e antecessor, foi com Chaplin que o cinema sentiu-se humanizado, representado por uma narrativa ficcional sem apelo político evidente (veja-se, em oposição, o caso do cinema soviético), sem com isso dispensar contextos e subcontextos, e acima de tudo individualizado.

Charlot, esse alter-ego do ator / realizador, é uma personagem própria e característica, enquanto que muita matéria neorrealista cede à simbologia e representação de que tais personagens podem oferecer ao filme. João, por sua vez, é uma figura individualista, tem sonhos, devoções, desesperos e muita fome. Nesse sentido, sim, há uma aproximação do ‘Roberto ao Chaplin. 

Em termos de recepção, é tema de grande debate desde essa altura o quão o filme era neorrealista, de um lado, e o quanto representava o surgimento do Cinema Novo português a par de Verdes Anos. Passados 60 anos, o debate continua a existir…

Por vezes sinto que “Dom Roberto” é posto de parte na discussão do parto do chamado Cinema Novo. No outro dia, durante a apresentação da cópia digital da primeira longa-metragem do seu companheiro, António-Pedro Vasconcelos, Perdido por Cem, falou-se muito desse “cinema novo” com referências diretas a Paulo Rocha e a Fernando Lopes. Menção alguma houve a Ernesto De Sousa.

Agora, uma ‘coisa’ é óbvia, e acho que o filme do Vasconcelos falha na estrutura de “Cinema Novo”, é que o “novo” associado às vagas e movimentos expandidos através do globo nos anos 60 deve-se a um senso de ruptura para a continuidade estética e temática da produção corrente.

Os Nouvelle Vague tornaram isso uma bandeira que se refletiu nos filmes que produziram até a novidade tornar-se rotina, o mesmo aconteceu em muitas outras nações, por exemplo com o Brasil. Em Portugal, se seguirmos a lógica de corte, Rocha e Lopes assumem esse papel na perfeição, mas em Sousa nota-se uma vontade de desconstrução.

A personagem de Solnado bem poderia encabeçar numa comédia salazarenta ou de costumes lisboetas, é o seu biótopo claro, mas o que Sousa fez, foi o de retirar esse ambiente e desafiá-lo a sobreviver, não numa farsa, e sim noutro cenário … e um não tão recorrente na nossa “industriazinha”.

O porquê de mencionar o Perdido por Cem, neste pensamento? Porque se trata de um filme com uma ideia de “réplica” a um outro cinema novo, ou seja, a Nouvelle Vague, com tendências aos trabalhos anteriores de Truffaut e Godard. Existe uma consciência de ruptura no filme do Vasconcelos com a imagem de uma “ruptura” anteriormente elaborada, na sua forma, abordagem e feitio. 

Ernesto de Sousa foi, no total, preso quatro vezes pela PIDE. Também é um filme  que tem o seu papel neste quadro de censura e resistência…

Dom Roberto é sobretudo um filme cansado. Cansado por ter “nascido” num país atrasado sem desejo do avanço (veja-se o subenredo do mecânico improvisado que monta o seu carro de raíz e o vizinho que constantemente o agoira). Um país sem apoios sociais, que despreza os desfavorecidos fervorosamente e os trata como marginais. Aliás, o filme demonstra-nos isso mesmo, um país de marginais, subsistido na sombra da capital e que só as suas fantasias oníricas a libertam das amarras do seu miserável quotidiano.

E não sei se repararam, mas o Dom Roberto é um fantoche, limitado ao seu palco e comandado por quem sonha com o conforto do razoável. No fim de contas, o “boneco” sobrepõe-se a João, o fantoche diário de uma estendida “palhaçada” operada por uma mão dominadora. Mais do que propaganda escancarada, o filme transporta-nos para a luta nos seus diversos subtextos e contextos, até chegarmos aquela declaração de Glicínia Quartin acompanhadas pelo garrafal “Fim” – “‘Mas … ainda não é o fim. O fim é para aqueles que desistem‘”.

* Critico de cinema, colaborou em sites como C7nema, Sapo e Cinema 7Arte, e tem um espaço de ensaios e pensamentos intitulado por Cinematograficamente  Falando …