HISTÓRIA DE PORTUGAL, ANOS 60: 7 MOMENTOS DE UMA CRONOLOGIA POLÍTICO-CULTURAL
O processo de descolonização das possessões portuguesas marca a política dos anos 60. Produz divergências internas diversas, que vão contribuir para a erosão do Estado Novo – aqui na sua quarta década; já em território africano divide-se entre episódios sangrentos pontuais e a prosperidade de muitos emigrados lusitanos. António de Oliveira Salazar, o ditador desde 1932, cai da cadeira em 1968; entre a queda e o fim da longa ditadura ainda se passará a “primavera marcelista”, hoje vista comumente como uma oportunidade desperdiçada.
Em termos socioeconómicos, o imobilismo da zona rural, um mundo diferente de centros urbanos como Lisboa, é sacudido pela imigração maciça (a França substitui o Brasil como principal destino) e pelo chamamento para o serviço militar.
Na cultura, apesar da censura sempre vigilante, muita coisa acontece: o cinema ingressa no movimento universal dos “cinemas novos”, a música é diversificada, a literatura conhece grandes momentos – particularmente com “O Delfim”, de José Cardoso Pires. Na cultura popular Amália e Eusébio estão no auge, tal como as peregrinações a Fátima; já a RTP, inaugurada em 1957, estende a sua rede para todo o país e, em 1968, surge a RTP 2.
POLÍTICA: AS GUERRAS PELA DESCOLONIZAÇÃO
O hediondo massacre de 800 colonos portugueses do norte da Angola, em fevereiro de 1961, dá o tom de um diálogo que o regime já tinha declarado impossível. Na origem está a UPA (a origem do MPLA), União dos Povos da Angola, e a dica é clara: Portugal terá que sair da África. Dois meses depois Salazar devolve na mesma moeda. Enquanto Portugal vai ao interior tirar muitos jovens do sossego e da ruralidade para enviar para a guerra, as frentes continentais que optam pela luta armada somam-se ao longo dos anos seguintes – MPLA, Frelimo, Unita, PIAGC.
Como conclusão sintética de um tema complexo, diz o historiador Rui Ramos: “Nunca, porém, conseguiram sujeitar Portugal a uma guerra com a intensidade da que os franceses enfrentaram na Argélia (…) o aumento da população portuguesa em África prova o reduzido impacto das guerrilhas. (…) Atraídos por um estilo de vida próspero, o seu grau de instrução era em média superior ao dos emigrantes para França, e o número de mulheres próximo do número de homens. Pouco foram incomodados por uma guerra que se manteve sempre de baixa intensidade“.
Da mesma forma, “o número de mortos em combate por 1000 soldados atingiu o máximo, nas três frentes, em 1966 (2,69 por mil), e diminuiu depois até atingir úm mínimo em 1973 (1,83). Durante a sua intervenção no Vietname, a média anual de mortos do exército norte-americano foi de 14,7 por mil, quase sete vezes a média portuguesa, de 2,23 (…) Também não foi uma guerra demasiado cara”. (Ramos, Rui; Sousa, Bernardo Vasconcelos e; Monteiro, Nuno Gonçalo (2009). História de Portugal. Lisboa: A Esfera dos Livros. pp. 684).
POLÍTICA: AS GUERRAS INTERNAS
Dois meses depois do início da guerra colonial, em função de divergências relativas à mesma, o ditador enfrenta uma tentativa falhada de afastamento conduzida pelo general Botelho Moniz, conhecido como a “Abrilada”. Já em 1965, Salazar prova do “prato que se come frio”: numa emboscada na fronteira espanhola, a Pide executa Humberto Delgado, o homem por trás da sacudilela mais notável na sua eternidade no poder.
Entre a oposição clandestina, o Partido Comunista Português (PCP) tinha protagonizado duas espetaculares fugas da prisão: a de Peniche, em 1960, libertou seu principal lider, Álvaro Cunhal; dois anos depois ocorre outra em Caxias. O VI Congresso do partido ocorre em Kiev, em 1966.
Mário Soares, por sua vez, andou um total de três anos preso em 12 diferentes ocasiões, e acabou deportado para São Tomé em 1968 – de onde pôde retornar alguns meses depois com a morte de Salazar. O Tarrafal, uma prisão construída numa ilha em Cabo Verde, continuará símbolo do regime.
A década, especialmente no final, encontrará ações de resistência (operários, pequenos agricultores, estudantes) contra a ditadura; esta responderá com a receita habitual de violência, prisões e torturas.
POLÍTICA: A PRIMAVERA MARCELISTA
Quando o presidente Américo Tomás teve de aceitar a realidade de que os danos cerebrais de Salazar eram definitivos, a escolha do sucessor, num processo complicado e repleto de divergências recaiu sobre Marcello Caetano.
O período a seguir recebeu ao alcunha de “primavera marcelista”. Nela o novo líder propôs algumas reformas sociais, abrandou a repressão, mudou o nome de instituições mal-amadas, como a Pide (passou a chamar-se Direção Geral de Segurança, DGS) e, especialmente, incluía dentro do partido governante (a União Nacional) a designada “ala liberal” – representante das esperanças de abertura de uma parcela da sociedade lusitana.
Mas a eclosão de diversas ações da oposição de esquerda (ataques armados), os cada vez mais numerosos protestos estudantis, a desfragmentação da “ala liberal” após a recusa do parlamento em discutir as leis de imprensa e a indissociável vinculação de Caetano à guerra colonial, levaram ao fim das possibilidades de uma transição pacífica. Voltou a linha dura da repressão, que se aguentaria até 25 de abril de 1974.
CINEMA: A DÉCADA DAS REVOLUÇÕES
Ainda dentro de um contexto ditatorial o cinema português começa a dar sinais de vitalidade e de rutura com o período anterior. Um dos marcos é “Dom Roberto” (1962), obra de inspiração neorrealista realizada por Ernesto Souza sem apoio estatal. Vindo do cineclubismo dos anos 50, o cineasta alcançou uma abordagem suficientemente incómoda para que a Pide o prendesse antes do seu embarque para o Festival de Cannes – que havia selecionado a obra. No ano seguinte Paulo Rocha lança outro marco do Cinema Novo português, “Verdes Anos”, seguido por “Belarmino” (de Fernando Lopes, 1964) e “Domingo à Tarde” (de António de Macedo, 1965).
Figura central na produção do período foi António da Cunha Telles, produtor de todos estes filmes e de obras relevantes de cinema de género, como “Sete Balas para Selma” e “Crime da Aldeia Velha”. Realizou ele próprio “O Cerco”, em 1969. Neste ano a Fundação Gulbkenkian patrocinou a criação do Centro Português de Cinema (CPC), que daria suporte à uma série de projetos nos anos 70. De destacar ainda a via documental – cujo pioneiro “Ato da Primavera” reúne entre os corealizadores dois futuros ícones do cinema lusitano – Manoel de Oliveira e António Reis. O filme é uma pioneira “docuficção”, formato de grande predileção em Portugal.
LITERATURA: OS LIMITES DA “TOLERÂNCIA” DO REGIME
A literatura foi uma vítima particular da Pide e da censura e um dos casos mais notórios foi o de José Luandino Vieira – preso no Tarrafal pelo regime. O prémio ao seu livro “Luuanda”, que denunciava a crueldade do sistema colonial português, oferecido pela Sociedade Portuguesa dos Autores, significou o fim desta: a sede foi invadida e tudo o que lá estava foi destruído.
Em 1968 José Cardoso Pires publicava um dos grandes clássicos da literatura portuguesa contemporânea – “O Delfim”. A história passa-se numa localidade fictícia provinciana, onde um crime acontece – e serve para observação da vida portuguesa sob o regime salazarista.
Em outros tipos de registos, existenciais ou intimistas, vários autores portugueses publicavam livros, como “Os Passos em Volta”, de Herberto Helder, uma estreia em prosa de um poeta consagrado. Outros escritores importantes eram Augustina Bessa-Luís, Sophia de Mello Breyner Andersen e Jorge de Sena, que muda-se para o Brasil em 1963.
MÚSICA: “AVANTE CAMARADA”!
Amália é a grande estrela da música portuguesa e incia o lançamento de uma série de álbuns famosos; seu prestígio não impede que o compositor com quem colabora assidualmente, Alain Oulman, seja preso pela Pide. Há canções de intervenção: exilado em França Luís Cilia compõem em 1967 “Avante Camarada” – adotada pelo PCP.
Dos eventos mais populares é o festival RTP da Canção: entre os vencedores na década estão Simone Oliveira (duas vezes), António Calvário, Carlos Mendes e Madalena Iglesias. Outros artistas populares eram Tonicha. O “rock”, que já existia em Portugal nos anos 50, tem expoentes como Filarmónica Fraude, os Sheiks e o Quarteto 111, com José Cid. Já os Chinchila são os adeptos do psicodelismo na Lusitânia.