Festival de Locarno: “Uma audiência alargada não choca com o cinema experimental”

Festival de Locarno: “Uma audiência alargada não choca com o cinema experimental”

Agosto 17, 2021 0 Por Roni Nunes
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O mundo está a mudar e os festivais de cinema vão ter de o acompanhar. Os desafios que a conjuntura dos últimos anos têm submetido a experiência do cinema em sala (pirataria, “streaming” etc.) implicam um radicalismo mitigado. Locarno, tradicionalmente um espaço mais voltado para o cinema de autor, anuncia através do seu chefe de curadoria uma clara intenção de atrair um público mais vasto sem abandonar a identidade. Foi o que fez também este ano, à sua maneira, o Festival de Roterdão.

A solução: juntar género e autoria, misturar experimentos formais com temas e conteúdos. Estas e outras questões, como as novidades dos novos filmes de Abel Ferrara e Bertrand Mandico foram discutidos com o editor do C7nema, Jorge Pereira, que esteve presente no festival suíço.

“Il Legionário” – “thriller” italiano vencedor de Melhor Realizador na seção Cineasti del Presente

Há uma série de indícios em Locarno que apontam para uma intensa revigoração da programação – que parece migrar da austeridade autoral radical para o compromisso com uma audiência mais alargada. Ao C7nema, por exemplo, o curador Giorna A. Nazarro disse que “as estratégias mudaram, sob uma decisão consciente de trazer o evento para mais próximo do público”… Como vê esse processo?

Uma audiência mais alargada não choca com o cinema mais experimental e de autor, bem pelo contrário. O que senti naquilo que vi em Locarno é que esse experimentalismos ou “radicalismo” pode ser apresentado sob as mais diversas capas. Por exemplo, o filme do Bertrand Mandico joga com o “western”, filmes de aventura, com elementos “pulp” e “pop”, muitas vezes “kitsch”, mas mantém o seu lado arrojado, o mesmo que ele traçou quando em 2012 fez o tal “manifesto da incoerência”.

Por outro lado, na mesma competição temos uma comédia negra dramática com artes marciais e muito romance, profundamente ligado aos filmes do género dos anos 80, o que também demonstra experimentalismo pois que audiência temos agora e estará ela interessada em ver isso ao som de “slow rock”.

“The Odd-job Men”, um “crowd pleaser” espanhol

O mesmo se aplica ao “The Odd-job Men”, um “crowd-pleaser” total, daqueles que colocou uma sala com centenas de pessoas a baterem palmas e rirem durante e depois do filme. É um filme estudado e concretizado como ficção, mas de construção documental, onde temos canalizadores a fazer deles mesmo e antes das filmagens a construírem o próprio guião.

E todos eles tocam em temas importantes, seja migração, o trabalho, a impotência sexual e a definição de novas masculinidades, ou mesmo se um mundo sem homens seria muito diferente do atual. Acima de tudo, audiência mais alargada é chamar público de género, seja ação, comédia ou ficção cientifica, mas mantendo um espírito de autor com experimentalismo à mistura.

Quando Nazarro também diz que “um grande festival não sobrevive se as plateias não se interessam pelo que existe nas suas mostras competitivas”, parece estar a aludir a uma certa obrigatoriedade de que os festivais de cinema independente acreditam existir de privilegiar o experimentalismo nas suas Competições…

A estranha “sci-fi” espanhola “Espíritu Sagrado”

Não tanto o experimentalismo, mas antes este se focar quase exclusivamente na análise de formas e métodos, esquecendo conteúdos e temas. Nazarro e a sua equipa conseguiram apresentar uma curiosa experimentação aliada a géneros normalmente associados a um tom mais comercial. Como a comédia, por exemplo, ou a ficção cientifica.

Não são só as salas cinema que têm de lutar contra o “streaming”, os festivais de cinema também. Não têm de ceder ao facilitismo narrativo e padronização que aí encontramos, mas tem de manter os olhos abertos a jogar nas duas vertentes (esticar o cinema a partir de dentro dele e das suas formas clássicas), tendo como foco criar uma identidade nova. A sua, que acabará por se refletir em todo o Festival.

O mesmo aconteceu com o Festival de Roterdão, que se reposicionou. Isso não significa ignorar o passado e os filmes mais “radicais” acima mencionados, até porque muitos cineastas que andaram por Locarno na última década regressaram este ano com novos filmes, mas o mesmo estilo.

“Brotherhood” – filme vencedor da seção Cineasti del Presente

Ao que parece também os júris estavam em sintonia com essa proposta da curadoria, já que premiou um filme em ritmo de ação (Vengeance Is Mine, All Others Pay Cash – foto no início do artigo), onde se fala em lutas coreografadas e até “slow rock” – uma adaptação asiática ao “rock” ocidental… Também em “Cineasti del Presente” venceu Brotherhood e o cineasta emergente foi de Il Legionário, um “thriller” passado no interior da polícia italiana…

Na  Cineasti del Presenti o melhor filme foi o Brotherhood, um documentário observacional tocante sobre 3 irmãos Bósnios e muçulmanos que depois do pai ser preso por terrorismo ficam entregues a si mesmos, cheios de conflitos. Podia ser uma alegoria à Jugoslávia pós-Tito, com conflitos internos muito derivados da identidade autónoma de cada um. Provavelmente enquadrarias o filme no seu lado mais radical, já que é meramente de observação e depois montado na forma de uma narrativa que até comunica com a montagem à distância do Pelechian. Mas vem carregado de humanidade, tristeza, amor e conflito e cativa o público também por isso.



No caso do  Vengeance Is Mine, All Others Pay Cash, como disse acima, mistura muita coisa e experimenta ainda mais, mas tem temas universais (amor, vingança, impotência sexual) que atraem qualquer audiência. E tudo está embrulhado numa comédia negra onde um mundo de toxicidade masculina no fundo esconde fragilidades, como a impotência sexual.

Ethan Hawke em “Zeros and Ones”

Os filmes mais mediáticos da Competição eram Zeros and Ones, novo do Ferrara, e After Blue, do Mandico. O que pode adiantar sobre esses filmes?

No caso do Ferrara é um regresso aos seus tempos iniciais, substituindo as vielas de Nova Iorque e submundo por Roma. É cinema de género guerrilha com as suas marcas completas, arrojado e também frequentemente incoerente, o que lhe dá uma certa garra e graça. Parte-se de um evento trágico e ambiente pandémico para continuar a caça ao terror. Não deve escapar cá a distribuição.

O After Blue é uma trip cinemática de alguém que quer ficar conhecido e representar no cinema o que David Bowie foi para a música. Um delírio fascinante carregado de erotismo, mas não sexualizado, também cheio de humor. Um humor muito particular num planeta distante chamado After Blue (o azul é referência à Terra) onde só existem mulheres.