Festa do Cinema Italiano 2023: “Seca”
Um dos muitos personagens de “Seca”, um “youtuber” tão ambicioso quanto falhado como ator a certas alturas faz um vídeo onde lê Raymond Carver. A citação do escritor norte-americano será dos pontos mais elucidativos sobre o que pretendeu Paolo Virzi – uma vez que Carver esteve na base de “Short Cuts”, a obra-prima de Robert Altman que avançava por níveis assinaláveis de realismo ao contar pequenas histórias do quotidiano de personagens que apenas ocasionalmente se cruzavam nos seus pequenos dramas. Spoiler: em termos simbólicos, aliás, o final de “Seca” é muito semelhante – quando um fenómeno da natureza (no filme de Altman um pequeno terremoto) que lembrava a transitoriedade de tudo e a gigantesca sombra da falha de San Andrés que simplesmente podia varrer aquilo tudo com um pequeno movimento de placas.
Assim, uma grande diversidade de personagens que tanto demonstram, de um lado, a capacidade do cineasta italiano em garantir o foco e o drama com uma imensidão de mudanças de perspetivas, por outro roçam pesadamente nos clichés e histórias já muito contadas – como a do motorista de Uber vivido por Valerio Mastrandea, um homem divorciado e sem rumo que tenta conviver com a filha adolescente enquanto a mulher, bem-sucedida como médica, anda às voltas com a um novo fracasso de relacionamento.
A dar o tal caráter existencial a todos os dramas quotidianos está uma seca extrema que assola Roma e dá-lhe um toque vagamente distópico, onde o Estado assume cada vez mais poder punitivo e controlador devido ao desespero que começa a assolar a cidade e jovens grupos de rebeldes fazem protestos cada vez mais assustadores. Pelo meio ainda há uma peste de origem desconhecida – que acaba por se tornar mais um fio solto na história sem acrescentar grande coisa. Este novo trabalho estilo “mosaico” de Paolo Virzi não figura entre os seus melhores esforços – especialmente depois do exercício particularmente bem-sucedido que a abordagem rendeu em “O Capital Humano”.