
Festa do Cinema Francês: “Madeleine Collins”
Por André Gonçalves
Uma jovem loira entra numa loja de roupa com o intuito de comprar um vestido, e com esta decisão a tomar se dá uma primeira divisão identitária: a mãe (ausente em cena, mas psicologicamente presente) queria que a filha escolhesse um tecido mais clássico mas, no gabinete de prova, a jovem decide também experimentar uma peça de roupa moderna que viu primeiro…
Assim começa Madeleine Collins, um título revelado só no início dos créditos finais, com justificação para tal e tudo. Um filme sobre identidade fragmentada e sobre performance e expectativas de género também – ou não fosse esta trama de “dupla vida”, socialmente associada quase sempre por homens, e até desculpada pela sociedade como sendo “homens a ser homens”.
Pois, desta feita, temos a primeira reviravolta de muitas com o sujeito central a partilhar duas famílias a ser uma mulher loira, daquelas que um falsificador de identidades de ar libidinoso e sujo (Nadav Lapid, num “cameo” marcante) diz “não estar à sua altura”. A loira do presente é Virginie Efira, e a atriz, a atravessar uma fase memorável da carreira, que começou com o resgate feito por Justine Triet (Victoria) e Paul Verhoeven (Elle) e foi prosseguindo para novos picos com os filmes seguintes destes cineastas (Sibyl e Benedetta respetivamente).
Ela aproveita o facto de possuir um rosto quer empático, quer possível de esconder um mundo paralelo – como já se viu nas provas anteriores acima citadas – para nos vender um novo retrato problemático, onde a mentira anda de mão dada com o trauma pessoal. Parece quase o que os americanos chamam de “typecasting”, mas do maior nível, e quando se tem um talento específico como Efira, porque não aproveitar?

Já Antoine Barraud, que realizou e escreveu os diálogos num argumento em colaboração com Héléna Klotz, revela-se um inesperado maestro, conduzindo o espectador e brincando com as suas expectativas à medida que vai formando uma massa de géneros, entre o melodrama, o estudo de personagem e o thriller psicológico “hitchcockiano” (o remoinho do penteado a lembrar Vertigo, a fragmentação de personalidade a lembrar Marnie) para formar um território que parece estar ainda por mapear, mesmo com tanta referência cruzada, entregue com uma sobriedade capaz de gerar risos (nervosos?) na reta final.
Há uma linha dita pela jovem criança de uma das famílias que espelha bem a tese central aqui: “Ainda és a minha mãe quando te ausentas?”. Claro que a esta altura já estamos conscientes da trama dupla e, portanto, esta pergunta é, em primeiro lugar, um piscar de olho à traição. Mas, se interpretarmos mais a fundo, seremos efetivamente a mesma pessoa quando estamos ausentes das pessoas que mais amamos? Esta é a questão eternamente fascinante que Barraud e companhia plantam em nós através desta obra. Uma questão que retorna posteriormente com a paixão potencialmente secreta do filho da outra família, o filho que está de olho na mãe tal como ela capta uma paixão secreta deste, num dos momentos mais intimistas do filme.
Esta não é uma película para puristas, está mais que claro. Será sobretudo para amantes de sociologia e comportamento humano “errático”. Para quem veja nesta troca de identidades particular e eventualmente bem justificada até um sintoma do mau estar sociológico que separa géneros masculino e feminino – raramente vemos histórias de homens que são forçados a trocar identidades e a enlouquecer no processo para gerir vidas duplas, pois lá está, é mais aceitável para eles à partida. Barraud até monta um cenário final de culpa e “monstruosidade” auto assumidas, mas toma a decisão corajosa de honrar a personalidade entretanto fragmentada da protagonista até ao escurecer do ecrã. Sim, ela pode precisar de terapia, mas não estarão os homens à sua volta a precisar também?
Para quem tenha mente suficientemente aberta, pode encontrar aqui um dos títulos mais marcantes deste ano.