FEST/Espinho, conclusão: quais filmes e de que serviu tê-los visto

FEST/Espinho, conclusão: quais filmes e de que serviu tê-los visto

Outubro 16, 2021 0 Por Roni Nunes
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O festival de cinema independente continua “online” na plataforma Filmin, cuja edição presencial decorreu na pequena cidade litorânea a 300 quilómetros de Lisboa. A programação buscou (e conseguiu) ser eclética – trouxe narrativas de género (Enforcement), dramas mais contemplativos (Pebbles, Lamb), docudrama (Mighty Flash),  “câmera-na-mão” (Poppy Field) e realismo (Zero Fucks Given), para citar alguns.

Em termos temáticos, vestígios dos tempos ergueram-se aqui e ali – a extrema-direita, o populismo, a homofobia, questões de raça e de género. Agendas à parte, o que interessa é quanto cada filme ganha (ou perde) na sua própria relevância.

De certo forma, Zero Fucks Given, o drama onde Adèle Exarchoupolous vive uma hospedeira cuja vida vai ao sabor dos seus voos para “lado nenhum”, acaba por ser dos mais abrangentes ao destacar um mundo de pequenos dramas que culminam num vazio existencial muito contemporâneo. A fuga à solidão e a necessidade de fantasia também geram efeitos colaterais dos mais dramáticos – como adesão à extrema-direita (The Last Knights on the Right Side) ou de um ingénuo grupo de seguidores de OVNIs (The Sacred Spirit) que esconde um mundo muito mais real e macabro.

O íntimo e o coletivo unem-se no drama do polícia homossexual de Poppy Field, enquanto a esfera privada tem todo o foco em dinâmicas familiares desajustadas – a perda transformada em aberração “fantástica” em Lamb, a relação abusiva recriada no seu ciclo vicioso em Pebbles.

A aridez de “Pebbles”

Em busca de afeto e fantasia

The Sacred Spirit (Espanha, Chema Garcia Ibarra): Os laços familiares não sustentam a vida do anódino dono de uma pastelaria – cujo grupo de seguidores de OVNIs e crentes em abduções que se reúnem numa imobiliária após o expediente é quem dá sentido a sua vida. Paralelamente, o expectador acompanha as investigações sobre o desaparecimento da sobrinha. Eventualmente o melhor dos filmes vistos no FEST, onde uma narrativa desvinculada dos “500 ‘frames’ por segundo” dos modelos convencionais, transforma-se progressivamente num suspense asfixiante. A sequência onde uma menina de oito anos entra num quarto com um sinistro “médium” é arrepiante. De resto o realizador deixa o expectador sem saber se ri ou se chora diante do que vê – onde o melhor exemplo é a penúltima sequência – quando a figura patética de um dos vilões involuntários da história senta-se entre os seus motivos egípicios, depois de colocar um CD de música “new age” e a sua expressão é captada na tragédia da sua extrema solidão e insignificânca. Melhor que isso só ainda o que vem a seguir – onde Chema finalmente permite ao espectador gargalhadas sem culpa ao erguer a figura de um gigantesco insuflável de um figura egípcia enquanto decorre uma operação policial.

The Last Knights on the Right Side (Polónia, Michal Edelman): o cineasta polaco passou seis meses no interior de uma organização de extrema-direita do seu país. Pôde assim documentar uma vida muito tranquila entre declarações de intenções mais ou menos razoáveis, churrascadas, coleta de roupas para sem-abrigo, protestos nas paradas LGBTs (a paz da comunidade só pode ser alacançada quando a violência for direcionada a um inimigo externo) muito vigiadas pela polícia e até eventos patéticos – como um que convoca grupos de música pimbas para uns poucos que se aventuram a circular por um parque onde estão instalados. Pode-se imaginar que estes tipos podiam, como em The Sacred Spirit, andarem a seguir OVNIs – já que são as mesmas coisas que estão em causa: o conforto de fazer parte de um grupo e dar colorido ao tédio da vida quotidiana com teorias mais ou menos delirantes. O registo de Edelman tem a vantagem de não fazer julgamentos nem agarrar-se a moralismos, mas diante de tudo o que está em causa (inclusive o facto do país ser governado por um extremista homofóbico, Andrej Duda) o retrato termina por ser demasiado superficial e descontextualizado.

Zero Fucks Given (França, Julie Lecoustre, Emmanuel Marre): uma terceira abordagem em torno do vazio existencial contemporâneo pode ser destacada no registo mais realista de Zero Fucks Given. Assumidamente, este é mesmo o tema principal do filme ao narrar o quotidiano da hospedeira Cassandra (Adèle Exarchoupolous, eventualmente no seu papel mais relevante desde o já mítico A Vida de Adéle) que não anda de um lado para o outro apenas no seu trabalho – mas numa vida que não vai a lugar nenhum: recusa passar o Natal com a família com uma frieza desoncertante, não é particularmente afeiçoada às suas colegas de trabalho, embebeda-se com relativa frequência, tem sexo casual (pede apenas para que ele fique mais cinco minutos com ela depois do ato) e, como sempre, cabe ao telemóvel preencher o resto. Se o trabalho de hospedeira pode parecer “glamouroso” a alguém, aqui ele surge indigno: mal pago (Cassandra nega as investidas do sindicato porque “não acredita na mudança”) e consistindo em sorrir, apanhar o lixo do avião, tentar impingir produtos e levar reprimentas por cheirar a álcool. Apesar de demasiado longo para as suas necessidades temáticas e narrativas, surge como um retrato pertinente a propósito de um  dos grandes dramas contemporâneos – a fragilidade dos laços afetivos e o vazio daí resultante.

Adèle Exarchoupolous em “Zero Fucks Given”

Polícias e dilemas morais

Enforcement (Noruega, Anders Ølholm, Frederik Louis Hviid): o “thriller” dinamarquês recria as premissas de congéneres americanos – sufocando dois agentes policiais num bairro árabe num noite complicada. Ocorre que Copenhagen está a ferro e fogo pela morte de um jovem desta etnia às mãos das forças de segurança – com uma referência direta ao célebre “I can’t breathe” de George Floyd. Uma vez que, excetuando-se a ação, o que importa mesmo são os dilemas morais que lança sobre os seus protagonistas (um polícia racista e violento, outro moderado circulam com um “suspeito” árabe), o resultado final deixa a desejar quando os cineastas adotam a via da redenção e do martírio sentimental para resolver o conflito. Antes disto, com melhores ou menos interessantes momentos, a discussão atira para todo o lado – e onde, pelos menos, se consegue mostrar a ambiguidade de todos os envolvidos nas lutas do “bem” e do “mal”.

Poppy Field (Roménia, Eugen Jebeleanu) : aqui o dilema vai para um único agente policial, que tem de arcar com o terrível peso da sua homossexualidade. Apesar da sua condição, não lhe passa pela cabeça posicionar-se quando ele e mais cinco colegas têm de intervir num daqueles protestos de fanáticos carregando quadros de Jesus e invocando as crianças que haviam invadido um cinema por causa de um filme LGBT. Para azar do agente, um ex-amante anda por lá, por sinal bastante indiscreto e eventualmente merecedor da cabeçada que termina por levar. E que vai precipitar o caos. Fluido e com bons momentos, pecando pela falta de inspiração do argumento no último terço.

Famílias (dis) funcionais…

Pebbles (Índia, P.S. Vinothraj): neste belo filme indiano caminha-se muito. Normalmente é o pai, um sujeito desprezível e violento, quem segue atrás do filho, um menino de cerca de sete anos. Tudo relaciondo as querelas entre o progenitor e a mãe. A aridez do relacionamento é posta em sintonia com a paisagem circundante a qual, não por acaso, assegurou um dos maiores esforços da pré-produção. A escolha recaiu sobre a mormaçenta …, localidade próxima a Madurai, no sul da Índia, e onde nem plantas nem gado sobrevivem. Numa cena, mulheres incendeiam tocas para fazer com que ratos saiam debaixo da terra – onde outra as espera no outro lado; os roedores irão parar ao espeto. Pecando ocasionalmente por alguns clichés de “arthouse” (pai e filhos colocados de costa enquanto estão à espera do autocarro), possuiu belos momentos, como um olhar “fantasmagórico” através de uma grua que segue o pai antes deste ser castigado chutando o pé descalço numa pedra, ou a igualmente etérea aparição de uma mulher de vermelho atrás do menino. Alguns recursos, como o menino a adicionar a pedra que trazia na boca à uma coleção (forma de dizer que aquela é mais uma de muitas), as mulheres que observam em silêncio enquanto uma delas pacientemente abastece o seu jarro tirando água do chão (a resisilência feminina contrastando contra a inquietação violenta do sexo oposto) adicionam sutileza à abordagem.

Hilmir Snær Guðnason e Noomi Rapace em “Lamb”

Lamb (Islândia, Valdimar Jóhannsson): da aridez do deserto para o verdejante mundo da Islândia – mas cuja vida do casal vivido por Hilmir Snær Guðnason e Noomi Rapace esconde vazio e tragédia – sugerida num pequeno-almoço logo no início, quando ela diz que “gostaria de voltar ao passado”. De resto o filme sugere “demais” e avança de menos: sabendo-se ser esta uma via conhecida do cinema alternativo, não impossibilita o espectador de questionar para que servem 20 minutos de tempos mortos na quinta do casal até que alguma coisa efetivamente aconteça. O resto desanda para o perturbador: a inserção do bizarro na boa tradição do realismo fantástico continua a fazer mossa – encaminhando-se por um capítulo de violenta justiça final que parece aludir a um velho ditado espanhol: “cría cuervos… e te sacaran los ojos!”