Edgar Allan Poe: cinco contos magníficos de um escritor genial

Edgar Allan Poe: cinco contos magníficos de um escritor genial

Janeiro 30, 2023 0 Por Roni Nunes
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Escritor vira personagem no filme da Netflix O Pálido Olho Azul (em Portugal “Os Olhos de Edgar Allan Poe”) e aproveitamos para relembrar cinco dos belíssimos contos do mestre.

Poe teve uma vida difícil devido, especialmente, ao alcoolismo e à instabilidade emocional intercaladas com períodos de miséria financeira – ao mesmo tempo que ocasionalmente ia beneficiando de reconhecimentos do seu talento gigantesco. Muito mais difícil de prever era que, anos depois, a sua obra seria matéria obrigatória nas escolas americanas e que o seu legado na cultura popular seria vertiginoso. 

Poe nasceu em 1809, em Boston e cresceu em Richmond, na Virginia – morrendo 40 anos a 200 km dali, em Baltimore. Neste intervalo de tempo teve viagens (incluindo cinco anos numa escola de Londres), paixões descontroladas, escândalos, miséria e, o que importa por estes dias, uma produção literária que começa a surgir em 1829 e percorrerá os seus próximos 20 anos de vida. 

Curiosamente, depois de morrer em condições difíceis (as causas são inexatas e várias teorias existem) pelas razões citadas acima, a sua memória póstuma teve ainda de enfrentar um violento crítico, um tal Rufus Griswold, cuja biografia que o caracterizava em termos muito pouco simpáticos (para dizer o mínimo) foi levada a sério o suficiente como fonte durante alguns anos.

No outro lado do Atlântico, no entanto, estava a se fazer justiça: ninguém menos que Charles Baudelaire, ele mesmo marcado por uma vida de excessos e pobreza, andava a traduzir escrupulosa e apaixonadamente a obra de Poe praticamente desde que a conheceu – o que ocorreu enquanto Poe ainda vivia. Foi o começo da excecional fixação do nome do escritor na História.

Cinco histórias extraordinárias

Como os contos são curtos, as sinopses são mínimas: fica o convite à (re)leitura destas páginas nas muitas edições existentes (em Portugal há uma recente, da Saída de Emergência, no Brasil da Companhia das Letras, de onde foram tiradas as citações) – e, para quem puder, no original – disponíveis em https://poestories.com/stories.php .

Manuscrito Encontrado numa Garrafa (1833)

Um dos mais belos contos de Poe – eventualmente uma das mais vívidas e atmosféricas descrições do mundo “do lado de lá”. A história narra a viagem de navio do protagonista, contada na primeira pessoa, e um surpreendente acidente onde ele termina por ser jogado em outro navio. O final é sensacional. 

Diz o narrador: “… as obras dos filósofos alemães me proporcionavam grandes delícias; tal não resultava de uma admiração mal avisada pela sua eloquente loucura, mas do prazer que, graças aos meus hábitos de análise rigorosa, sentia em surpreender os seus erros. Diversas vezes me censuraram a aridez de meu génio; uma falta de imaginação foi me imputada como um crime…”

Como sempre, parte da graça é a descrição do “impossível” com base numa argumentação lógica – onde o escritor descreve, com a frieza e o sentido lógico de um relatório médico, os acontecimentos que testemunha. Poe é um dos mais versados autores em abordar aquele que é um dos grandes temas da ficção terrorífica: a forma como os personagens lidam com aquilo que não pode ser compreendido pela razão.

E, se ao protagonista foi imputada “falta de imaginação”, tal não ocorre com o próprio Poe – que adentra pelas tonalidades de uma impressionante descrição de um mundo fantasmagórico e só tangível, justamente, pela imaginação. 

William Wilson (1839)

Que dirá ela, a terrível consciência, esse espectro no meu caminho?”. Poe cita um poeta (W. Chamberlayne) para introduzir a dimensão psicológica desta que é uma das suas mais sufocantes criações. O personagem-título, talvez à semelhança do próprio autor, é um homem dissoluto, que passa os dias entretido em farras e jogatinas contínuas até que, subitamente, começa a ser duramente atrapalhado por um inusitado duplo – outro que é igual a ele e surge sem ser convidado.

Torna-se evidente aquele que é um dos grandes tormentos do autor: a consciência que, como uma espécie de anjo vingador, surge violenta e implacável para impedir a satisfação do desejo e, em última análise, aniquilá-lo.

Previsivelmente, para um homem assolado por tal infortúnio não espanta que seja ele o primeiro a admitir o material do qual é feito e que denuncia logo a abrir o conto – onde até a sua identidade é posta em dúvida: “Admitamos que me chamo William Wilson. Meu verdadeiro nome não deve sujar as páginas em branco que tenho à minha frente. Tenho sido o horror e a abominação do mundo – a vergonha e o opróbrio da minha família!”

Singularmente a história de Poe converte-se numa espécie de um bizarro “crime e castigo” onde a punição não vem de fora – mas milita insuportável no interior da mente.

O Gato Preto (1843)

Os tormentos psicológicos vão ainda mais longe nesta violenta história envolvendo maus tratos domésticos, alcoolismo, homicídio, desmembramentos, ocultação de cadáver e, principalmente, a maior de todas as agressões – o remorso representado pelo gato que segue o protagonista mesmo depois de, aparentemente, morto. 

Neste sentido, em termos de terror psicológico a ideia é quase uma réplica de “William Wilson”, embora com as suas peculiaridades próprias (antes da representação do duplo é o gato que, através da sua presença, ameaça a destruição do criminoso) – para além de ser a história mais sangrenta e “gore” escrita pelo mestre. 

A bebida está aqui na raiz dos problemas, conforme constata: “Pois que outro mal se pode comparar ao álcool!”. De pessoa afável o “herói” vai desenvolvendo o “espírito da perversidade”, “o prazer do crime pelo crime”. Ao contrário de “O Barril de Amontillado” (abaixo), por exemplo, não se trata de um crime premeditado e argutamente planeado, mas um “ato de fúria demoníaca” pelo qual é possuído e que o leva a cometer atrocidades.

A Queda da Casa de Usher (1839)

Mais de sete décadas haviam passado depois do destemido Horace Walpole ter inaugurado, em pleno apogeu do Iluminismo, as maldições “medievais”. Em “O Castelo de Otranto” (1764) o mundo dos vivos de aristocratas (o principal deles muito pouco virtuoso) era importunado pelas desagradáveis heranças, aparições e maldições que vinham dos recônditos de um passado tenebroso. Poe recria aqui esse imaginário à sua maneira muito particular.

Neste conto quase minimalista em acontecimentos, o narrador faz uma visita ao seu velho amigo Usher, atendendo ao seu pedido desesperado. O mal-estar psicológico é, aqui, transformado numa doença – onde o Medo apodera-se do titular da casa ao mesmo tempo que este e a irmã começam a definhar numa estranha simbiose com o castelo onde vivem.

Poe aqui transforma a herança do passado numa maldição corrosiva e sutil, onde fica sugerida que até as pedras da Casa de Usher partilham de “sensações”. O escritor faz aqui uma série de citações, onde a arte, de certa forma, está interligada àquele estado de “apodrecimento” do espírito. Para o terror conta ainda um dos mais medonhos artifícios explorados por Poe: os enterramentos vivos. 

O Barril de Amontillado (1846)

Sempre suportei o melhor que pude as mil injúrias de Fortunato; mas quando estas transformaram-se em insultos, jurei vingança”. Aqui menos sujeitos a metáforas psicológicas e mais saboroso por relatar com a sua intensa lógica um terrível processo de vingança contra o pouco afortunado Fortunato, o narrador da história explica, antes de mais, os princípios de uma “vendetta” perfeita: o ofensor tem que saber por quem está sendo punido e o perpetor tem que escapar impune. “Devia não só punir, como punir impunemente”, esclarece.

Uma vez que o narrador não fez nenhuma ameaça à vítima e continua a lhe sorrir amavelmente, o que segue é uma magnífica descrição de uma pérfida manipulação onde a vítima será apanhada num ponto fraco descoberto criteriosamente pelo algoz e que a vai manipular com pérfida frieza e precisão.

Mais não vale contar, basta dizer que Fortunato tem a vaidade de ser “expert” em vinho e que acompanhará o contador da história numa temerária jornada para prová-lo. O final é estupendo e termina com uma inscrição que não se pode reproduzir aqui, mas que ficará para sempre na memória do leitor.