
E o prémio de sensação “indie” do ano vai para… “A Pior Pessoa do Mundo”
Cultura XXI inicia uma série de postagens relacionadas aos Oscars, cuja cerimónia de premiação realiza-se a 27 de março. O filme do norueguês Joachim Trier, que já foi uma das sensações do Festival de Cannes 2021, está indicado pela Academia ao prémio de Melhor Argumento Original. “A Pior Pessoa do Mundo” está atualmente em cartaz em Portugal.
Por André Gonçalves
Se não se sentir a melhor pessoa do mundo, Joachim Trier deve-se considerar, a um par de anos de completar meio século de existência, uma pessoa privilegiada, e com razão. Finalmente, Hollywood será forçada a ouvir o seu nome a ecoar num teatro de Los Angeles quando for conhecido o vencedor do Oscar para Melhor Argumento Original, da qual consta o seu A Pior Pessoa do Mundo, uma obra em parceria com Eskil Vogt, que se manteve uma constante nas cinco longas-metragens que entretanto dirigiu.
A nomeação é desde já uma vitória suada para este duo que deu o litro no circuito festivaleiro, dado que a Neon tinha claramente um cavalo anglo-saxónico chamado Spencer onde apostou o dinheiro todo. Mas o filme encontrou, inesperadamente para uns – aqueles que insistem que Hollywood não lê legendas, mesmo depois do fenómeno “Parasitas” – um ninho de amor no círculo mainstream de argumentistas, como Nora Ephron e Judd Apatow que assumiram publicamente nas redes sociais a sua adoração, e ajudaram a tornar esta a dramédia internacional do ano.

Foi também por meio desse género tão malogrado que Trier admitiu recentemente ter vindo buscar inspiração para completar esta Parte Três daquela que foi chamada entretanto como trilogia de Oslo (iniciada pelos filmes Reprise e Oslo, 31 de Agosto). O cineasta admitiu que foi depois de ter visto Comer, Orar e Amar de Ryan Murphy com Julia Roberts numa encruzilhada existencial, burguesa com certeza, mas descrente num sistema capitalista feito de uma sequência de etapas sociais com regras bem definidas para o que significa ser uma mulher (da sua classe, sim), que germinou a ideia de aplicar o conceito à realidade norueguesa e a uma protagonista um pouco mais jovem.
Definitivamente, não é a resposta que os puristas gostariam de ter ouvido (pediam Antonioni, ou Rossellini, temos pena…). Mas Trier tem esta descontração mais associada às gerações mais jovens de não debitar as referências do costume, capaz assim de desconcertar a crítica intelectual de velha guarda, como vemos muito em território português.

Não tendo pilares facilitadores e autossuficientes como Comida/Religião/Amor, A Pior Pessoa do Mundo move-se em capítulos, como se de um livro transposto se tratasse. Há espaço para tudo na encruzilhada existencial de Julie (Renate Reinsve, que já tinha feito Isabelle Huppert fixar a sua cara quando a viu numa peça de teatro). Julie é uma jovem de 30 anos que comete o pecado capital da traição, e com um homem comprometido como agravante.
Mas comecemos pelo princípio. Julie abandona cursos, não sabe o que quer fazer e o seu primeiro grande namorado é o “cartoonista” Aksel (Anders Danielsen Lie, o outro elemento constante desta trilogia, num claro prolongamento das personagens anteriores), um homem uma década mais velho, um macho intelectual de velha guarda anti-cultura de cancelamento que acredita que pode ser o seu mentor. A relação nem vai bem nem vai mal, assume-se um conforto com atritos ocasionais, sobretudo na diferença de idades e expectativas. Julie toma talvez esta diferença mais a peito e, num dos momentos mais inesperados, decide invadir uma festa onde conhece Eivind (Herbert Nordrum, o Adam Driver do Norte).

Perante um clássico triângulo, seria de esperar o expectável, mas Trier e Vogt trocam as voltas, não forçam resoluções e, se Julie sai mais madura após 12 capítulos, não é necessariamente uma maturação óbvia, mas sim mais interna. Esta dupla de homens atribuiu aqui uma agência e liberdade a uma personagem feminina raramente atribuída pelo género oposto – e saímos todos a ganhar. A moralidade aqui está no olhar do espectador.
Podemos concordar que Julie aprende várias lições pelo caminho, como se pode argumentar que essa é uma visão maniqueísta e até machista daquilo que se pretende ser um retrato da realidade adulta e com uma cruel ironia final (o sorriso perante um evento tantas vezes trágico) que pretende quebrar precisamente fronteiras do “bem” e do “mal”. Talvez por isso, o título “A Pior Pessoa do Mundo” seja ele próprio a primeira das provocações.