Doclisboa 2022: “Godard Cinema”
Julie Delpy conta que, num aniversário de Jean-Luc Godard, telefonou para lhe dar os parabéns. Apesar de ter certeza que era ele, a voz do outro lado do aparelho insistiu todo o tempo que Godard não estava. Esse é o homem fugidio que Cyril Leuthy tenta resgatar sem cair no descalabro de não o relacionar com a sua obra.
Tarefa árida abrir caminho entre o mito e uma pessoa que nunca contribuiu muito para ser verdadeiramente conhecido. Apesar de confessar que nem é um particular fã de Godard, o cineasta Leuthy enveredou com bravura por arquivos e entrevistas, antigas e novas feitas para o filme, e conseguiu uma obra incrivelmente estruturada que funciona bem como um cartão de apresentação ao cineasta franco-suíço falecido há um mês.
Apresentado em ordem cronológica, vai se formando em torno da brutal cisão com a família rica (que nunca se conformou com o seu caminho pelo cinema e chegou-se ao ponto de ele ser proibido de frequentar o funeral do avô) e passa pelos seus tempos de universidade e adesão aos Cahièrs du Cinéma.
Sobre Acossado, o filme inaugural, já muita tinta correu, mas Leuthy consegue reabordá-lo com novos ângulos – tal como sua vasta produção dos anos 60 (15 filmes, no total) – operando para isso uma mistura bem-sucedidade de pequenas análises estéticas com, dentro do que era o seu maior objetivo, entrevistas que lançam luz sobre a sua personalidade. As mulheres entram aí – a musa Anna Karina, o primeiro casamento, Anne Wiazemsky, o segundo, e o último – com Anne-Marie Miéville. Poderia ter havia um quarto – não fosse um sonoro não que levou a que nunca mais dirigisse a palavra à atriz Marina Vlady.
Rumo ao radicalismo político
Tão rico como no debate artístico quanto no político, é dos mais reveladores o caminho de violento radicalismo de esquerda que ele iniciou com o influente A Chinesa, obra em tom catequístico sintonizada com a Revolução Cultural de Mao (a ironia não escapa ao alemão Daniel Cohn Bendit, lider estudantil no Maio de 68, que aponta a contradição do libertário Godard em abraçar um projeto totalitário) e que continuaria com radicalíssimo experimento com Jean-Pierre Gorin, os filmes do grupo intitulado Dziga Vertov onde Godard, já mundialmente famoso e cujo casamento até havia sido capa de revistas cor-de-rosa (!) tentava dissolver a sua autoria numa tentativa de democracia “suicida” (para um resultado coerente) com as equipas de produção.
A par das inevitábeis desilusões com a política, uma tortuosa via de renovação pessoal foi procurada por Godard na solidão de uma pequena cidade, até o retorno, com o seu nome de volta à baila, com o provocador e labiríntico Salve-se quem Puder – que, longe de ser a primeira vez, desafiava a compreensão dos seus próprios atores… Entra aqui depoimentos preciosos de luminares como Nathalie Baye e Hanna Schygulla.
Cyril Leuthy estabelece como limite cronológico da sua abordagem o épico esforço de História do Cinema e os seus 266 minutos que tomaram em torno de dez anos da vida de Godard – sendo concluída em 1998 e cuja reflexão sobre cinema, imagem e sociedade lhe concede uma abordagem histórica nada convencional. De outra coisa não se estaria à espera, aliás…