
Comunismo x nazismo: assassinato pragmático e genocídio racial
Inaugurando a seção “Brainstorm”, um espaço dedicado à reflexão aprofundada sobre acontecimentos históricos ou do mundo contemporâneo, o economista Christian Velloso Kuhn debate-se sobre o grave problema da alienação histórica. Essa é a segunda parte da sua análise (a primeira pode ler aqui) e tanto mais pertinente quanto recria a política assassina de Estaline contra os ucranianos nos anos 30 – mostrando que a agressão dos russos sobre os seus vizinhos do sul está longe de ter iniciado nos últimos dias.
Por Christian Velloso Kuhn
As atrocidades soviéticas
A segunda comparação entre comunismo e nazismo que costumeiramente é feita é quanto ao número de mortes causadas por cada regime. O historiador inglês Robert Conquest estima que o regime comunista na antiga URSS causou mais de 20 milhões de mortes. Nessa conta inclui homicídios de opositores ao regime, mortes em campos de trabalho forçado e por inanição na Grande Fome da Rússia em 1921 e na Ucrânia no biênio 1932-1933.
Conforme o historiador norte-americano Timothy Snyder, o regime stalinista foi responsável pela morte de 3,3 milhões de ucranianos (foto de abertura). O objetivo era obrigar camponeses rebeldes a expandir a produção agrícola e trabalhar em fazendas coletivas para suprir a demanda do Kremlin. Como geralmente era superior à capacidade de produção, havia rebeliões desses camponeses que eram contidas por brigadas do Partido Comunista, que levavam todos os alimentos e fechavam as fronteiras.
Uma política assassina
Alguns ucranianos chegam a comparar esse período com o holocausto. Contudo, para os historiadores Barkan e Evans, muito embora a violência cometida pelo regime soviético mereça ser “repudiada e reconhecida”, não chega a configurar em genocídio tecnicamente falando. Isso porque, ao contrário do regime nazista alemão, os assassinatos não visavam a extinção de uma raça, mas “a dominação e expansão das políticas comunistas”. Evans crê que as mortes de milhões de ucranianos não se deviam a sua nacionalidade, “mas porque eram fazendeiros que poderiam resistir à política de coletivização da agricultura. Era uma política assassina, mas não baseada em raça“.
O historiador complementa afirmando que o fato de não ser configurado como genocídio não implica que esse regime seja melhor ou que atenue os crimes cometidos contra o povo ucraniano. Apenas que eram diferentes os objetivos de Hitler e Stalin. Para Barkan, o extermínio de ucranianos não fazia parte da ideologia do regime comunista, cujo objetivo era transformar a União Soviética.

Genocídio racial
Legalmente, considera-se o holocausto como genocídio uma vez que assim como apresenta o que a Convenção sobre Genocídio da ONU denomina de “elemento mental” (“intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, enquanto tal”) quanto o “elemento físico”, constituído de ações como assassinar ou causar danos físicos e mentais graves a membros do grupo, dentre outros.
Desse modo, de acordo com Barkan, “…o nazismo é único por dois aspectos: um deles foi o propósito de destruição, ou seja, o esforço de exterminar e erradicar uma população; e segundo pelo fato de todas as vítimas de genocídio compararem seu sofrimento ao nazismo para expressar que estão padecendo da maior atrocidade possível.”
Brutalidade e sadismo
Quanto a Evans: “Os nazistas trataram os judeus com brutalidade e sadismo particulares. Havia um desejo de degradação e desumanização que torna a violência nazista particular. No comunismo, a violência não tinha cunho racial. Ela era dirigida contra quem acreditavam ser subversivos e não embutia o mesmo ódio visceral que o nazismo tinha pelos judeus“.
A supressão da oposição
Outra abordagem na comparação entre comunismo e nazismo é quanto ao totalitarismo dos dois regimes. Nesse particular, é onde ambos guardam maior similaridade, pois foram totalitários, concentração do poder em um único líder (Hitler e Stalin), elevado controle da vida pública e privada dos indivíduos pelo Estado e repressão violenta aos opositores.

Segundo Evans, os dois regimes impediam a atuação de uma oposição e de exercício de liberdade de expressão, e garantiam total apoio nas eleições que eles organizavam. Ainda de acordo com o historiador inglês, “… em ambos, havia uma mistura de manipulação, intimidação, censura e supressão da oposição.”
O assassinato intrínseco à ideologia: nazismo
Algo que precisa ser deixado bem claro no cotejo entre comunismo e nazismo é se trata da ideologia ou do regime. Enquanto ideologias, o comunismo não prevê necessariamente o uso de violência, sobretudo direcionada a grupos étnicos e raciais, como o nazismo. Porém, quando se trata dos regimes, foram períodos muito bem definidos na história.
O regime comunista soviético liderado por Josef Stalin durou 29 anos (1924-1953) até vir a falecer, enquanto o regime nazista alemão foi comandado por Adolf Hitler durante 12 anos (1933-1945). A ênfase no número de mortes ou no grau de autoritarismo não se refere ao comunismo e nazismo enquanto ideologias, mas a respeito desses regimes especificamente.
A liberdade de expressão ilimitada: a banalização do holocausto
Porém, deve ficar muito claro que essa comparação pode até mostrar o quão violentos foram ambos os regimes, contudo é ilegítimo minimizar ou trivializar o holocausto, pois conforme bem explica Barkan, isso acaba legitimando o antissemitismo e a violência contra os judeus.
Logo, é isso que os libertários de direita ou pseudo liberais precisam considerar quando reivindicam uma liberdade de expressão ilimitada. Como bem expôs o professor Pedro Serrano na Carta Capital, “Quem quer liberdade absoluta não quer garantir direito de liberdade, mas sim fazer valer um privilégio”. Serrano explica que, nas revoluções nos EUA e França, a concepção de direito se contrapõe a de privilégio, pois enquanto o primeiro é algo que deve servir a todos, o último é direcionado apenas para poucos, sobretudo aqueles que compõem uma elite e detêm poder.

A contradição do “libertarianismo”
É por isso que para que seja universal, os direitos precisam receber alguma limitação. Para o professor: “A posição defendida por Monark não é nazista, mas de outro tipo de autoritarismo – o libertarianismo. E para demonstrar a inconsistência dos argumentos libertarianistas não é preciso contrapô-los a um pensamento de esquerda, mas ao pensamento liberal”.
Pedro Serrano explica que, para o liberalismo clássico, o direito de liberdade se refere à “propriedade do próprio corpo”, ao passo que dada a amplitude da liberdade requerida por Monark, esta inclusive se “estenderia à propriedade do corpo do outro”. Exercer essa liberdade apregoada pelos libertários implicaria a legitimação da constituição de um partido nazista que apregoa a eliminação de um grupo de uma determinada etnia ou raça.
Liberdade e bom senso
O extremismo requerido pelos libertários anarcocapitalistas chega a ponto, conforme argui Serrano, da defesa de ideias como os filhos poderem ser vendidos pelos seus progenitores, como se uma mera mercadoria fossem, haja vista que aqueles seriam os seus proprietários. Ou seja, concederia o direito de alienação aos pais da própria prole. Ou da privatização do Judiciário e da Polícia, permitindo que alguns indivíduos possam agir com violência sobre os outros.
Desse modo, ainda que a democracia possa comportar organizações de extrema-direita ou de extrema-esquerda, o mesmo não se pode permitir ao nazismo pois, diferentemente, não se restringe apenas a uma ideologia extremista, mas nas palavras de Serrano, “por ter por pressuposto o cometimento de um crime de lesa-humanidade”.
Os próprios anarcocapitalistas podem até se organizar e se expressar, entretanto, precisam ter consciência das consequências sobre a democracia e a liberdade quando não estabelecem um mínimo de bom-senso, fazendo com que a defesa do direito a liberdade de alguns se transforme num privilégio que transgrida e cerceie a liberdade de outros – inclusive às custas de sua própria sobrevivência.