Bom cinema português: “Estamos no Ar”
Por André Gonçalves
A vida é uma sequência de movimentos, e Diogo Costa Amarante, vencedor do Urso de Ouro de curta metragem por “Cidade Pequena” de 2016, executa agora finalmente um grande movimento para o formato longa-metragem com este “Estamos no Ar”. Para já, conquistou q.b. quem o viu no IndieLisboa 2024, após já uma passagem por Roterdão.
Fosse este um outro planeta – Júpiter talvez, e teríamos campeão de bilheteira. Mas Costa Amarante decide aqui não limar totalmente as arestas, quer as enrugadas pela “queerness” explícita, quer a “queerness” pelo conceito que lhe era originalmente atribuído – de “estranheza”. De facto, decide através de uma história que cruza gerações de avó-mãe-neto, popular de personagens e respetivas tiradas cómicas que parecem ameaçar partir-se aqui e ali em subenredos, e que lembram aqui uma referência inescapável: o mestre Almodóvar dos primeiros tempos, no seu espectáculo “camp” tragicómico despudorado. Desta feita, a tragédia consegue inclusivé atingir píncaros existencialistas, e ser até a cola que vai unindo os subenredos que vamos assistindo.
Uma avó (Valerie Braddell) terá feito um pacto com uma amiga (Cucha Carvalheiro) para ser possuída pelo espírito do seu marido (voz altiva de Luís Miguel Cintra, a marcar algumas das gargalhadas mais audíveis da plateia) enquanto residem num palacete que serve de aparente lar; por outro lado, a sua filha (Sandra Faleiro), cobiça a farda desse polícia, farda essa que é sorrateiramente usada pelo filho (Carloto Cotta) que ainda vive em sua casa, para cobiçar outros homens que fetichizam o traje. E é por este trio central que se expande o tal mosaico social de personagens secundárias sempre com um esqueleto seu escondido no armário, onde o surrealismo do que se passa diariamente num programa da tarde de TV não é o suficiente para cada uma delas tomar consciência que não está de facto sozinha nas suas taras e manias. Talvez a maior das tragédias narrativas, essa falha de reconhecimento total do movimento comum que une estas personagens.
Mas “Estamos no Ar” transmite pelo menos a cada espectador essa imagem de esperança na diferença que nos une mais do que julgamos, ensinando-nos a assumir essas idiossincrasias neste grande movimento vivido e partilhado com humor e orgulho. Ao assistir de fora a esta tapeçaria social, olhamos também nós para dentro das nossas próprias redes intrínsecas, e sorrimos com a certeza que nada nas nossas vidas seja tão mais estranho como a história da pessoa que nos está a ligar ao telefone. Tudo isto é estranho, tudo isto existe, tudo isto é fado.