Cannes 2021, filmes: Matt Damon, Bolsonaro, cartéis mexicanos e as crises do capitalismo
Cannes está no quinto dia: nove filmes da Seleção Oficial já foram exibidos, sete da Quinzena dos Realizadores e seis da Semana da Crítica.
“O MARINHEIRO DAS MONTANHAS”, Karim Ainouz (Sessão Especial)
Em 2019 Karim Ainouz entrou num barco em Marselha e rumou Mediterrâneo afora para Argel. Uma vez por lá entrou num autocarro e rumou para um vilarejo nas montanhas em busca das origens do pai – um médico argelino que abandonou a mãe grávida, uma bioquímica brasileira, e embrenhou-se na violenta guerra por independência que o seu país travava contra a França. Karim Ainouz foi criado pela progenitora em Fortaleza e, naquele que iniciou com uma busca pelo pai terminou por ser, segundo o realizador, “uma carta de amor à mãe” (como também já era “A Vida Invisível”, de 2019). Bem recebido na primeira exibição pública em Cannes, Ainouz disse que o projeto era muito pessoal e não sabia se as pessoas iam gostar. “Agora sei que é universal”, disse após a sessão. Como tem sido de praxe desde o golpe que destituiu Dilma Rousseff, todos os brasileiros que passam por Cannes protestam – como o fez, por exemplo, a equipa de Kléber Mendonça Jr. contra Michel Temer. Num violento discurso, Ainouz disse, entre outras missivas, que “Não posso deixar de lembrar que enquanto estamos aqui comemorando milhares de brasileiros estão morrendo por causa do descaso deste governo fascista”. A equipa depois postou uma faixa com as palavras “530 000 mortos, fora gângster genocida”.
“STILLWATER”, Tom McCarthy (Sessão Especial)
Mais do que apenas um drama convencional de um país arrancado de sua terra para tentar desesperadamente resgatar a filha presa num outro país, alguns críticos presentes em Cannes têm visto o filme como uma oportunidade usada por Tom McCarthy para trabalhar de forma eficaz questões como choque cultural. Neste caso, arranca um personagem da América profunda e lança-o no vórtice multicultural da Marselha francesa – onde irá conviver com uma mulher sofisticada que lhe servirá de intérprete. Matt Damon embarcou no projeto e andou conviver tempos no interior do Oklahoma, nos Estados Unidos (com “rednecks” à mistura) para compor o seu personagem. Segundo ele, um crítico aberto de Donald Trump, certamente os homens que ajudaram-no a compor a personagem são apoiantes de ex-presidente – mas o facto de terem sido muito amáveis também lhe serviu para “abrir os olhos”. Já outros sugeriram que o filme representa a maneira como os estrangeiros agora olham para os Estados Unidos depois da governação da extrema-direita…
“THE DIVIDE”, Catherine Corsini (Seleção Oficial)
Da participação francesa na Seleção Oficial “The Divide” parece dos menos cotados (Peter Bradshaw, do Guardian, chegou a perguntar “mas qual era o ponto, afinal?”). De qualquer forma, o objetivo político do filme garante o interesse ao situar a ação em 2018, durante o movimento dos “coletes amarelos” que turbinou o segundo ano do mandato de Emmanuel Macron. Para retratar simbolicamente o que podem ser as relações no limite e as divisões da sociedade francesa Corsini situou a sua ação dentro de um hospital. Lá está à espera de atendimento a personagem de Valeria Bruni-Tedesco (uma cartunista às vésperas de romper com a namorada) e um camionista revoltado – enquanto coletes amarelos feridos pela polícia tornam o ambiente do hospital caótico.
“LA CIVIL”, Teodora Mihai (A Certain Regard)
Com um naipe de pesos pesados na coprodução (os irmãos Dardenne, Cristian Mungiu, Michel Franco), o primeiro filme de ficção da cineasta romena vai ao México contar uma história situada no interior dos cartéis de droga. No filme uma mulher, diante da inércia e da corrupção das autoridades, resolve ela própria desafiar os criminosos em busca da sua filha sequestrada. “La Civil” colheu muitos aplausos no final da sessão e a atriz principal (Arcelia Ramírez) disse esperar que a mostra ao mundo da realidade dos sequestros dê uma pequena contribuição para o seu combate. A história, apesar de fictícia, inspira-se livremente na vida da ativista Miriam Rodriguez Martinez – que em 2014 levou a cabo, mediante uma panóplia incrível de disfarces, perseguições e até apontar a arma a um criminoso, uma incansável busca pelos responsáveis pelo desaparecimento da sua filha. Dez membros do terrível cartel Zeta foram presos, mas em 2017 alguns fugiram da prisão e a vingança não se fez esperar: Miriam foi morta com 13 tiros à frente da sua casa.
“SOFTIE”, Samuel Theis (Semana da Crítica)
Theis construiu um filme no limite das águas turvas ao narrar a odisseia de um menino de dez anos que desenvolve uma relação de afeto por vezes exagerada pelo seu professor. De uma vida negligenciada e pobre, de onde observa os destemperos românticos da sua jovem mãe solteira, o rapaz encontra no professor um apoio que também encontra os primeiros ecos de uma atração sexual por alguém do mesmo sexo. Segundo se tem escrito, trata-se de um filme sutil e um exercício de realismo psicológico. O cineasta já venceu a Camera D’Or (Melhor Realizador estreante) e ganhou um prémio n’A Certain Regard, em 2014, quando corealizou “Party Girl” com Marie Amachoukeli e Claire Burger.